Volta ao Algarve: ciclismo e regabofe.
O falso plano foi ao Malhão. E, de facto, as pendentes revelaram-se exigentes. Ainda é Fevereiro e o nosso pico de forma está apontado para o Verão.

Esta história começa no Pingo Doce de Almodôvar. Minto. Esta história começa no carro do Henrique Augusto. O sol nascia. Eu e o Henrique contemplámo-lo, esbelto. Demos as mãos, e no sol vislumbrámos o rosto de João Almeida. Ok, não demos as mãos mas podíamos — e na verdade pedimos à entourage falso plano que ali colocasse o João Almeida, para materializar o nosso assombro. Começava o sonho. Destino: Malhão, derradeira etapa da Volta ao Algarve.

O Henrique dizia que João Almeida tinha tudo para ganhar, que o Vingegaard estava no início de temporada, que ainda não era aquele Vingegaard que vamos ver no Tour. Eu respondi que Vingegaard é Vingegaard e que o João Almeida devia estar nervoso perante a possibilidade de vencer a competição. Mais tarde, para muita tristeza minha, viria a ter razão. O Bota Lume não conseguiu afastar os demónios internos e viria a ver o dinamarquês arrecadar a classificação geral depois de na Fóia o português ter sido superior. Mais do que fazer a análise do que falta a João Almeida, estou aqui para vos contar mais uma epopeia falso plano pelas estradas de Portugal. E agora sim, estamos no Pingo Doce de Almodôvar.
Nove e tal da manhã. Bom dia, minha senhora, tem cerveja fresca? Ah, pena. E gelo? Ui, não há gelo? Então mas o gelo é para quê? Ah, o gelo é para meter na geleira, para refrescar a cerveja. O Henrique foi buscar a geleira e a senhora vai à peixaria e descarrega gelo para a melhor geleira do mundo, a geleira do Henrique. E nem nos cobrou nada. Percebemos logo que estávamos muito longe de Lisboa e dos locais deste país em que provavelmente o diálogo acima descrito não teria chegado a acontecer: não haveria gelo e nós teríamos de ir a outro supermercado. Começou bem.
Arrancamos em direcção ao Malhão, por uma nacional linda de morrer, onde penetrámos serra algarvia adentro, sobe-e-desce, imaginámos por ali uma clássica, onde talvez António Morgado pudesse vencer. Meia hora depois estávamos no epicentro do mundo, no topo do Malhão e entrámos num tasco que ontem deve ter sido visitado por muitos dos que decidiram rumar à Volta ao Algarve: a Padaria do Malhão. Deixem-me dizer-vos que de padaria tem pouco. Tem cerveja boa e fresca. Tem bifanas e sandes de presunto e tem gente boa, que depressa nos acolheram com a frase clássica "é como se tivesse em sua casa, amigo".
Pouco depois fomos fazer o reconhecimento, avisando que voltaríamos. No fundo, fomos escolher qual seria a curva falso plano. E minha mãe, que paisagem deliciosa encontrámos no Malhão. Inclusive, um grupo de profissionais do farnel e petisco ambulante, com direito a perna de presunto e vinho fresco logo pela manhã. Pedimos para tirar uma fotografia com a esperança de que nos oferecessem um bocado de presunto, mas tal não aconteceu.

Mas o estilo era tanto, o ambiente era tão amigável e entusiasmaste, que não conseguimos ficar chateados com o facto de não nos terem oferecido presunto, além disso, o senhor ainda estava na fase de tirar o bedum. A gente percebe.
No fundo, o Malhão estava ainda algo despovoado, mas os profissionais já lá estavam e a vista já se nos apresentava deslumbrante. Decidimos que ficaríamos a coisa de 550 metros da meta, em pendentes agressivas e relativamente perto destes patrões do presunto, no caso de nos dar a larica. Toca então de subir e regressar à Padaria do Malhão. Era tempo de esticar as pernas, refrescar a garganta e ver Tadej Pogačar despachar a concorrência em Jabel Hafeet. Confirmou-se tudo. E a garganta foi ficando muito refrescada. Comemos uma bifana só para fazer a caminha ao estômago e depois apercebemo-nos que alguns corredores iam fazendo o reconhecimento da subida e passavam mesmo em frente à esplanada da Padaria do Malhão. Nem é tarde, nem é cedo, saca do telemóvel e vamos apertar com eles que pode ser que parem para nos dar um bacalhau.
Qual parar, não pararam coisa nenhum, até porque a maioria ia a voar. Nomeadamente um tal de Jonas Vingegaard.

Claro que neste momento o Henrique tinha ido aos lavabos, se não teria percebido que a vitória de Vingegaard estava garantida. Nessa altura, eu e o Henrique estávamos já na companhia do senhor Luís, um algarvio na casa dos 60 anos com uma paixão enorme pelo ciclismo. Veio perguntar-nos a que horas partia o primeiro ciclista e teve sorte porque nós sabíamos. E depois ainda nos deu uma lição de conhecimento de ciclismo, relembrando-nos que corredores da mesma equipa não podem partir de forma consecutiva num contrarrelógio e que por isso Jan Christen e João Almeida iam sair intervalados pelo Laurens De Plus apesar de serem primeiro e segundo à geral. E também foi o Luís que identificou Primož Roglič à distância quando eu e o Henrique dizíamos que era demasiado magro para ser o esloveno — provavelmente já não estaríamos com a nossa visão a 100%.
Bom, estava na hora. Fomos ao carro buscar os mantimentos e arrancámos para a curva falso plano. Estávamos prontos.

Os ciclistas começaram a passar e nós fomos apoiando quase todos. A subida do Malhão é tão dura que considerámos importante dar uma palavra de conforto — um "anda lá, Bruttomesso, o Dias tem-te na fantasy"; um "Ó Noah tens de dar mais, Noah, anda lá"; um "RAFA, hoje é teu RAFA", coisas assim, muito motivadoras e compreensivas. E assim foi decorrendo a etapa, o sol não deu descanso, o calor era intenso, fomos fazendo amigos, as pessoas foram engraçando connosco, com a nossa forma de falar, com o nosso jeito para beber canecos, com as nossas sandes aprumadas. Ainda metemos José Mário Branco para ver se os ciclistas ganhavam uma força extra naquelas pendentes tórridas.
E o pior de tudo: é que o Henrique continuava a achar que o João Almeida ia ganhar. Os melhores da classificação foram passando, eu gritei que me fartei para um dos protegidos falso plano, Jesús Del Pino, e o resultado de Wout Van Aert começou a trazer a névoa, a possibilidade de ver as abelhas despacharem toda a gente. O momento alto desta tarde foi, provavelmente, quando passou Julian Alaphilippe, ídolo do Henrique, que foi para o meio da estrada e correu dois segundos atrás do francês — e deixem-me dizer-vos que àquela altura do campeonato eu já não achei que fosse possível. Não resultou foi em nada, a primeira prova de Loulou na Tudor não deixou grandes memórias além daquele ataque na Fóia e desta abordagem do Henrique, claro.

Um bocado depois, a curva falso plano já estava na máxima força, já emprestávamos a minha cadeira de campismo à malta que connosco gritava, já partilhávamos tempos nos intermédios, era tudo nosso. O ânimo, no entanto, sofreu um rombo daqueles quando o João Almeida passou no primeiro intermédio e depressa percebemos que Vingegaard ia ganhar a geral. A cara do Henrique, o melão no Malhão, digamos assim, foi impagável.

Pelo menos, ainda havia onde afogar as mágoas. Menos mal. Ficou o silêncio e o som das latas a abrir. Ficou o vazio. E depois, que remédio, toca a subir em direcção ao pódio, não sem antes pararmos na estação do presunto e pedirmos um bocado, sem medo, o João tinha perdido e nós tínhamos perdido a vergonha. Digo-vos uma coisa: aquele presunto era classe mundial. E nesse momento, por breves instantes, toldado pela frustração e pelo sol que começava a descer e já não tinha o rosto de João Almeida, passou-me pela cabeça começar um projecto de presuntos. Sei lá, fazer um podcast de presunto, um blogue de presunto, fantasy de presunto. Não partilhei com ninguém, fica um segredo só nosso. Um segredo provavelmente mais caro e menos saudável do que o falso plano.
Voltámos ao pódio, aplaudimos o João Almeida, o De Plus, o Vingegaard, o Meeus e fomos acabar o conteúdo da geleira, do lado oposto da rua da Padaria do Malhão, com vista para a serra e dialogámos sobre a clássica do Mount Ventoux, sobre Simon Carr e Cristián Rodríguez. Porquê? O que é que isso interessa?

E ali, a olhar a serra, julgo que aceitámos que João Almeida é um sol particular. Tem os seus handicaps, tem as suas lacunas, mas continua a ser melhor do que muitos dos que lhe antecederam. E que se tivermos de voltar ao Malhão, para o último dia da Volta ao Algarve, com João Almeida com grandes hipóteses de vencer, esse será novamente um belo dia de ciclismo e regabofe. E o falso plano, provavelmente, foi criado para isso: ciclismo e regabofe. E presunto, claro, também, muito, sobretudo presunto.