Torneio das Três Nações: que futuro para Espanha, França e Itália?

Desde 2016 que nenhum destes países celebra uma vitória numa das três grandes voltas.

Torneio das Três Nações: que futuro para Espanha, França e Itália?
https://live.staticflickr.com/7600/27289437671_f9fd3ba4f1_b.jpg

Desde 2016 (Vincenzo Nibali, Volta a Itália) que nenhum destes países celebra uma vitória numa das três grandes voltas. E a não ser que algo de muito estranho aconteça na Volta à Espanha que agora começa, 2022 continuará a ser um ano de seca. E daqui em diante?

Parece coisa da idade média, mas não é. Não há muito tempo, a Volta a Itália era propriedade dos italianos. De 1997 a 2007, ou seja, uma década, nenhum ciclista estrangeiro foi capaz de superar os homens da casa — Ivan Gotti (2x), Marco Pantani, Stefano Garzelli, Gilberto Simoni (2x), Paolo Savoldelli (2x), Damiano Cunego, Ivan Basso, Danilo Di Luca. E na Volta a Espanha, somos capazes de lembrar-nos do domínio de Roberto Heras e Contador? Do milagre de Aru em 2015?

Se olharmos para a Volta a França o cenário é ainda mais desolador. Tirando vitórias pontuais de Nibali, Carlos Sastre, Pantani, Pedro Delgado, dos anos de Contador e do começo da década de 90 com o arraso de Indurain, é difícil encontrar bandeirinhas espanholas, francesas e italianas no primeiro lugar da maior prova de duas rodas do planeta — seria preciso recuarmos aos anos 80 e a Hinault e Fignon. Em jeito de pergunta: quem foi o último cidadão de um destes países a estar presente no pódio da Volta a França? Romain Bardet, em 2017, durante a última vitória de Chris Froome.

O deserto imposto pelo Reino Unido, Eslovénia e Colômbia, vencendo 13 das últimas 15 grandes voltas dos últimos cinco anos e alguns outros países mais recentemente, significará que a troika em questão desinvestiu? Que por alguma questão genética ou climatérica deixou de produzir matéria-prima capaz de vencer competições de três semanas? Nenhuma resposta, neste caso, é acertada, muito menos responsável.

França: os dois meninos de 2003

Comecemos por olhar para a França, que não vence uma das três grandes voltas desde que em 1995 Laurent Jalabert venceu a camisola amarela na Volta e Espanha ao serviço da O.N.C.E. — a roja só entrou em vigor em 2010. Ou seja, a tendência não é propriamente actual. Bardet e Pinot são provavelmente os dois ciclistas que nas últimas duas décadas mais fizeram renascer a esperança de uma vitória em grandes voltas ao povo francês. Quando apareceram no pelotão internacional todos percebemos que havia, em ambos, pernas para isso. Não chegaram lá — embora ambos tenham pódios na Volta a França — e provavelmente já não vão chegar, nem eles nem Gaudu. No entanto, animem-se, que há muito tempo não se via tanto garoto com qualidade por terras gaulesas. Entre homens mais rápidos como Axel Laurance, Paul Lapeira ou Paul Penhoët, outros que parecem adequar-se melhor a terreno inclinado — como Valentin Retailleau, Kevin Vauquelin, Hugo Toumire ou Mathis Le Berre — e outros ainda a provas de um dia ou a vencer etapas em provas de uma semana — como Matias Louvel, Bastian Tronchon, Alex Baudin ou Ewen Costiou (embora tenhamos de permanecer atentos ao evoluir destes jovens atletas e naquilo em que se vão querer especializar), há dois que parecem ser as estrelas da companhia sobretudo no que ao potencial de conquista de grandes voltas diz respeito: Lenny Martinez e Romain Grégoire.

Laurent Jalabert (O.N.C.E) (foto. Wikimedia)

Dois atletas com 19 anos que pertencem à equipa continental da Groupama-FDJ, embora ambos com uma perna já na equipa principal — é onde vão correr na próxima temporada. E aqui não há como negar o trabalho de excelência que a equipa dos irmãos Madiot tem feito nas camadas jovens, contribuindo de forma inegável para o aparecimento destes jovens, bem como na captação e desenvolvimento de talentos ingleses (Lewis Askey, Jake Stewart, Samuel Watson), australianos (Ruben Thompson, Laurence Pithie) ou até italianos (Germano Lorenzi).

Martinez, por exemplo, fez terceiro lugar na Volta a Itália sub-23, venceu o Giro Ciclistico della Valle d’Aosta — uma das maiores provas por etapas no escalão pré-elites — e quando em Abril foi chamado à piscina dos grandes via Tour dos Alpes foi 14º classificado na geral numa prova repleta de grandes nomes do ciclismo mundial — mais: vimo-lo muitas vezes a puxar no pelotão, mesmo em terreno inclinado, capaz de impor ritmos que desmembraram o pelotão; Storer foi segundo e Valter foi quinto na geral final. Em 2021 já tinha sido terceiro na road race dos campeonatos europeus de juniores e dos nacionais franceses. Com 1,67m e 52 quilos, Lenny Martinez promete ser um dos melhores trepadores da próxima década. Vejamos como cresce, sobretudo no contrarrelógio.

Grégoire, por sua vez, foi bicampeão nacional de juniores em 2020 e 2021 — aqui amealhando também o título de contrarrelógio, foi campeão europeu de juniores em 2021 e medalha de prata nos mundiais da mesma categoria, enquanto fez quinto no Paris-Roubaix. Em 2022 venceu a Liège-Bastogne-Liège em sub-23 e a Flèche Ardennaise — uma das clássicas mais importantes no escalão. Ou seja, Grégoire mostra além de todo o potencial uma polivalência e um perfil de all-rounder que há muito não existe em França, sobretudo se o compararmos com Bardet, puro trepador — e até mesmo com Pinot ainda que de forma menos evidente.

Serão estes dois jovens capazes de mudar o triste destino recente da nação francesa? Nós diríamos que sim, mas estaremos cá para ver. E cobrar.

Itália: está aí alguém?

Em terras transalpinas, na última década foi de facto o “Tubarão” a trazer para casa melhores resultados nas três grandes. E tirando o surpreendente segundo lugar de Damiano Caruso na Volta a Itália de 2021, a coisa tem sido bastante escassa. Dos ciclistas mais experientes hoje em atividade, não parece que nenhum tenha tarimba para conquistar uma grande volta.

Ciccone na etapa 6 da Volta a França 2020 (foto: Wikimedia)

Em relação a Giulio Ciccone, por exemplo, há muito que se percebeu que é um trepador demasiado irregular para tal façanha. Caruso não parece capaz de ir mais longe do que já foi. No fundo, a herança de Nibali e Aru está por preencher. Prova disso é que Domenico Pozzovivo, aos 39 anos, é talvez o melhor italiano com características de voltista na actualidade. Pozzovivo insiste em não morrer e quanto a isso nada contra, o facto de faltarem nomes para cobrir a sua eventual reforma — bem como a de Nibali — é que não se revela bom sinal.

Itália tem sido muito mais capaz de produzir bons ciclistas para clássicas, como Filippo Baroncini (campeão do mundo sub-23 em 2021) — e alguns já mais velhos como Alessandro Covi, Samuele Battistella, Vincenzo Albanese, Lorenzo Rota, Stefano Oldani, entre tantos outros mais credenciados e mais perto do fim de carreira — do que bons voltistas. Giovanni Aleotti, por exemplo, ciclista da Bora-Hansgrohe com contrato até 2023, foi segundo no Tour de l’Avenir em 2019 e não tem conseguido confirmar essas características e os bons resultados em sub-23, à excepção do Sibiu Cycling Tour, uma prova por etapas na Roménia em que é dono e senhor da competição sendo actualmente bicampeão — a concorrência, como se percebe, não é famosa.

Zana em ação pela Bardiani-CSF-Faizanè (foto: Wikimedia)

Outro exemplo — e provavelmente aquele em que os italianos depositam mais esperanças — é Filippo Zana, terceiro no Tour de l’Avenir de 2021, que acaba de assinar pela Bike-Exchange com um contrato assinado entre 2023 e 2025, e que no primeiro ano em elites, ao serviço da Bardiani-CSF-Faizanè não foi capaz de andar entre os melhores, ao contrário de jovens como Carlitos Rodríguez ou Tobias Halland Johannessen — tendo apenas alcançado a classificação geral da Adriatica Ionica Race, uma prova de categoria 2.1 sem grande importância. Zana conta já com 23 anos, tem obviamente de melhorar no esforço individual, mas mais do que isso tem de ser capaz de mostrar aquilo em que é bom: a subir. E mesmo isso não tem aparecido.

Há ainda Marco Frigo, italiano ao serviço da Israel – Premier Tech pelo menos até 2024, bom trepador, mas a quem também faltam provas de que é capaz de estar entre os melhores no World Tour. O cenário não é favorável para os italianos. Mesmo aqueles que mostram mais resistência nos gémeos estão perto de um lugar no top10 de uma grande volta. Imaginar a vitória é algo, neste momento, bastante distópico. E olhando para o fundo das escadas não vemos ninguém com vontade de subir. Ouve-se apenas o eco de alguém a chamar. Mas também é preciso saber chamar.

Espanha: se há alguém capaz, esse alguém é espanhol

Contador na última etapa do Tour de France 2009 (foto: Wikimedia)

A pergunta impõe-se: quem vem após Alberto Contador? Quem é o próximo da linha? É lógico que ser Contador não é fácil, mas a verdade é que depois de “El Pistolero” mais nada — a não ser uns pódios de Enric Mas, Alejandro Valverde, Purito Rodríguez e Mikel Landa. Relativamente a Mas e a Landa podemos todos concordar que a festa acabou, certo? Foi bonito, mas não passa disto. O que é claramente insuficiente para a sede de um público tão fanático e habituado a ganhar como o espanhol. Valverde está cada vez mais para lá do que para cá e Pello Bilbao não tem o motor indicado para a alta montanha ao ponto de ser um candidato sério a vencer uma grande volta.

Dito tudo isto: Espanha sorri para o horizonte. Dificilmente algum país consegue observar um futuro tão nítido — menos formas de nuvens rebuscadas e mais silhuetas bem definidas — como nuestros hermanos. Já falámos de Carlitos Rodríguez, segundo classificado do Tour de l’Avenir 2021, actual campeão espanhol de estrada, uma vitória de etapa na Volta ao País Basco e com top5 na geral de provas como Volta a Burgos, Volta a Comunidade Valenciana, Volta a Andaluzia — onde foi terceiro, apenas superado por Aleksandr Vlasov e Remco Evenepoel — e La Route d’Occitanie. Foi um primeiro ano de estreia em elites de muita qualidade. Carlitos é um trepador como poucos e não se defende muito mal no contrarrelógio. Mais: tem 21 anos.

Vitória de Ayuso no Circuito de Getxo - Memorial Hermanos Otxoa (foto: twitter Getxo Kirolberri)

E o que dizer de Juan Ayuso? Vencedor da Volta a Itália sub-23 2021 — vencendo as três camisolas — e ia bem encaminhado para fazer o mesmo no Tour de l’Avenir quando uma lesão lhe retirou essa possibilidade. Este ano, no primeiro ano completo como sénior pela UAE-Emirates — com quem acabou de assinar o contrato mais extenso de sempre da história do ciclismo: renovou até 2028, digno de um contrato do Athletic Bilbao —, foi quarto classificado na Volta a Romândia, quinto na Volta a Catalunha (ambas provas World Tour) e acabou de vencer — a 31 de Julho — a sua primeira etapa em elites no Circuito de Getxo. Ayuso é uma força da natureza. Um ciclista de classe mundial. E muito seguramente um futuro vencedor de grandes voltas se não cair de uma ponte na Lombardia ou coisa parecida.

Estes dois valem por 30 de tantos outros países. Ainda que Espanha tenha estado a ver nascer outros ciclistas que prometem em várias categorias, como Raúl García Pierna (Kern-Pharma) actual campeão espanhol de contrarrelógio — onde Mikel Azparren (Euskatel – Euskadi) e Ivan Rómeo (Hagens Berman Axeon) também já mostraram credenciais —; ou Oier Lazkano, ciclista da Movistar que venceu no passado mês de Julho uma etapa na Volta a Valónia e que parece gostar de corridas de um dia; ou Roger Adrià, também da Kern-Pharma, que venceu este ano uma etapa na Route d’Occitanie e que tem revelado ser um trepador com um kick bastante interessante.

Ainda assim, todos estes parecem ter de esperar. Mesmo Lenny Martinez e Romain Grégoire, perante Carlitos Rodríguez e Juan Ayuso, estão bastante ao fundo na fila do refeitório.

Para Espanha, França e Itália, há ventos de mudança com desejo de soprar. Mas todos sabemos que durante bastantes anos terão tempestades de outras nacionalidades a puxar para o lado oposto. Como sempre: é baixar a cabeça e continuar a trabalhar.