O último vale dos tubarões

Na crónica desta semana, chora-se antecipadamente pela futura ausência de Alejandro Valverde e de Vincenzo Nibali.

O último vale dos tubarões
Valverde e Nibali ao ataque no Tour de France 2015 (foto: Wikimedia)

Na crónica desta semana, chora-se antecipadamente pela futura ausência de Alejandro Valverde e de Vincenzo Nibali. Estamos na última Grande Volta que ainda pode contar com a elegância ciclística destes imperadores do pedal. O Olimpo do Ciclismo, ou pelo menos a subscrição premium das memórias do ciclismo, aguarda estes campeões.

#GraciasBala (foto: instagram Alejandro Valverde)

Se na jersey que os corredores vestem tivessem de levar os troféus já conquistados, ao invés de barrinhas e géis, Nibali e Valverde precisariam de um bolso sem fundo. E se calhar não chegava. Estamos no fim da primeira semana da Vuelta e estamos a duas semanas do fim da carreira voltista do Tubarão de Messina e do Bala de Las Lumbreras. Vão pendurar os capacetes profissionais no final das respetivas temporadas. Até lá, ainda esperamos que Nibali ponha o pelotão a soro numa descida atómica por terras de la Paella e que Valverde lute até ao fim pela camisola da juventude desta Volta a Espanha.

Alejandro Valverde Belmonte ganhou, até ao dia em que escrevo, por 133 vezes enquanto corredor profissional. Foi campeão do mundo, ganhou a Vuelta, tornou suas as clássicas empinadas e ainda descansou pelo meio por indicações judiciais.

Valverde a ganhar até no mundo virtual. (foto: twitter Alejandro Valverde)

Entre os 11 e os 13 anos ganhou por 50 vezes. Era um prelúdio para o que se seguiria na Kelme e depois na Banesto que entretanto virou Movistar. E dentro do caos que é a Movistar, ainda é Valverde, com os seus 42 anos, a figura de proa e de vitórias. (Enric Mas, se me estás a ler, eu entendo que não concordes, mas então ganha que eu dedico-te o que humildemente te posso dar: uma crónica no falso plano).

Vincenzo Nibali não tem a explosão de Valverde, nem nunca teve capacidade para sprintar em grupos grandes e às vezes nem nos reduzidos. Mas tem algo mais: ganhou Giro, Vuelta e Tour e teve também mais cabelo do que Valverde ao longo das décadas de ciclismo que ambos nos ofereceram.

Tubarão hidratado, a calcular um ataque final. (foto: instagram Vincenzo Nibali)

Ganhou a alcunha ainda em juvenil, quando até se destacava principalmente nos contrarrelógios. Era ambicioso e tinha sede de sucesso, era esperança na Fassa Bortolo e deu-lhe de gás na Liquigás. Desculpem o trocadilho pouco sólido, que viveu acima de tudo do facto de os erros dos outros trocadilhos terem desistido de aparecer neste espaço. Nibali terá sempre quem lhe diga que venceu quando os outros não souberam ganhar. A esses, talvez mostre o best of que eu e outros fãs temos guardado nas respostas rápidas a anti-Nibalistas: da Lombardia aos nevoeiros montanhosos que o levaram ao restrito leque de colecionadores da amarela, rosa e vermelha.

Vivemos os últimos meses profissionais de dois dos maiores que vimos correr. Nibali, o trepador silencioso, que em pico de forma voava e descia montanha acima e abaixo, com duas rodas no chão, num pedalar cadenciado que apaixonava um país órfão de brilhantismo e ousadia rebelde. Uma Itália com saudades de carismáticos que esgotavam jornais, Coppi, Pantani, Bettini ou Cippolini.

Valverde, “El Imbatido”, o homem que nunca quis ser Indurain, que sempre preferiu a explosão e o ser quase excelente em tudo do que só na classificação geral, para assim viver habituado a ter dois braços no ar. Que nunca abdicou da Primavera para brilhar ainda mais no Verão francês. Bala, o cantar do touro de uma Espanha que precisa de Ayusa, perdão, de ajuda, para superar o vazio de um homem que era uma equipa.

Nestas duas semanas de Vuelta, torcerei por ambos. Uma vitória de etapa, uma celebração do ciclismo, uma fuga impensável, um tratado de inteligência em qualquer tirada pouco talhada para eles. Porque numa era em que tudo voa e tudo passa, o ciclismo ainda sabe cativar e manter memórias de heróis de uma geração que vê outros surgirem.

Eu serei sempre as memórias do Nibali do Hautacam, de Tre Cime de Lavaredo ou de Como. E também as serei do Alejandro de Huy, de Innsbruck e da cidade espanhola da Vuelta 2022 que certamente receberá a vitória do melhor jovem de 42 anos que Espanha já viu.