Daniela Campos: “Não podemos baixar os braços agora que as coisas estão a andar”

A ciclista algarvia recusa-se a virar as pernas à luta. Acredita que o ciclismo feminino português vai continuar a evoluir. Acredita que o seu nível vai subir ao ponto de conseguir dar o salto. No fundo, Daniela Campos, acredita. Acreditemos nela — e com ela.

Daniela Campos: “Não podemos baixar os braços agora que as coisas estão a andar”

Enquanto uma parte significativa da população portuguesa se banhava nas praias de Albufeira e bebia o seu primeiro shot na sempre turbulenta noite da Rua da Oura, Daniela Campos pedalava ao som das cigarras. Serra algarvia adentro — à boleia do seu pai e com a companhia do seu irmão, Noah Campos, Campeão Nacional de sub-23 — desbravava trilhos pedaláveis. Havia treinos em que nem uma mera vivalma vislumbrava. Esse Algarve, ao qual o ruído dos postais turísticos não chegava, foi a sua casa e o seu motor.

Aos seis anos, aprendeu a andar de bicicleta sem rodinhas e duas semanas depois integrou o clube BTT Terra de Loulé — a paixão tem destas coisas. Mais tarde, viria a dedicar-se à estrada e pista com passagens pelas também algarvias 5 Quinas e Velo Performance. Com a chegada à idade adulta, trocou o Algarve por Espanha, numa altura em que amealhava resultados de excelência em campeonatos europeus nas duas vertentes que ainda hoje concilia. Passou pela Bizkaia Durango, onde chegou a bater Antonia Niedermaier, e agora corre ao serviço da Eneicat - CMTeam, onde já venceu provas UCI.

Deixemo-nos de adereços: estamos na presença de uma das melhores que o ciclismo português feminino viu nascer. Aos 22 anos, confia que o seu tempo ainda está por vir. A convicção com que diz que quer ser líder tranquiliza-nos mais do que nos preocupa — termina contrato em 2025 e afirma que a sua prioridade seria subir um patamar, se a oportunidade surgir. A sua temporada arranca em Heusden-Zolder, na Bélgica, nos Campeonatos da Europa de Pista, onde fará a corrida por pontos. Relativamente à estrada, vai estrear-se em 2025 na Clasica de Almería, no dia 23 de Fevereiro.

Esta é uma conversa demorada com uma corredora que não gosta de confusões — embora tenha escolhido passar grande parte da sua vida no meio de um pelotão com mais de cem ciclistas — e que adora sterrato; que anda lindamente no contrarrelógio, mas que também é capaz de sprintar. Uma corredora cheia de contradições, como qualquer ser humano interessante deve ser. Dos esclarecidos, é melhor ter receio. 

Como ficará claro durante a entrevista, representar Portugal é sempre uma das prioridades da ciclista. (foto: Comité Olimpico Português)

Miguel Branco (MB): Tu tens 22 anos e pertences a uma geração que habita esta era da informação, da hiperestimulação, muitas notificações e que, por isso mesmo, tem uma outra relação com o tempo. Isso não parece bater muito certo com a ideia de passares grande parte da tua vida em cima de uma bicicleta. Porquê o ciclismo?
Bom, eu comecei no ciclismo com seis anos, por influências do meu pai que andava de bicicleta com os amigos. Eu inclusive comecei no BTT e só mais tarde, quando tinha 14 anos, é que comecei a fazer estrada e pista e depois, já na última categoria de júnior, acabei por dedicar-me a 100% às duas vertentes. No primeiro ano de sub-23 ingressei logo numa equipa continental em Espanha e, desde aí, tenho-me mantido a este nível.

MB: Então o teu pai é um ciclista amador que dá umas voltas com os amigos pelas serras algarvias, é isso?
Sim, aquelas voltas de fim-de-semana, de domingo, como muita gente faz. O meu pai nunca foi ciclista profissional nem nada parecido, foi apenas o gosto pela bicicleta.

MB: Essa tradição de domingo estendeu-se também a uma prática de família, que o teu pai fazia contigo e não apenas com os amigos?
Sim, comigo e com o meu irmão. Eu aprendi a andar de bicicleta sem as rodinhas bastante tarde. E duas semanas após ter aprendido fui parar a uma equipa de formação de BTT.

MB: O Club BTT Terra de Loulé.
Exactamente. Fiz bastantes anos da minha formação com essa equipa. Conciliava os treinos com a equipa e as voltas com o meu pai e depois com o meu irmão quando começou a crescer. Foi assim que tudo começou.

MB: Estiveste também no clube 5 Quinas, em Albufeira, certo?
Sim, o 5 Quinas é um clube de estrada e, no fundo, eu nessa altura mantive-me no BTT Loulé. Fazia as corridas de BTT, ciclocrosse, tudo isso com o BTT Loulé, e as competições de pista e de estrada com o 5 Quinas. No meu último ano de júnior, fui para a Velo Performance e aí abdiquei do BTT.

MB: É uma estrutura algarvia também?
Sim, pertencia ao Campinense, que tem uma estrutura de futebol também.

MB: E, portanto, nos intervalos disso tudo estudavas.
Sim, na altura estava a estudar…

Henrique Augusto (HA): Era uma das quatro modalidades…
Sim, é verdade, fazia tudo [risos].

HA: Eu gosto do conceito de, 15 dias depois de aprenderes a andar sem rodinhas, entrar logo num clube. Se se aguenta em pé, em princípio está bom para ir competir.
Exactamente [risos].

MB: Pelo que percebi, o Algarve enquanto território e mesmo enquanto lugar de crescimento pessoal parece ter um papel importante na tua história. E pensava, a preparar esta entrevista, que não é nada o Algarve dos postais turísticos, das praias cheias de gente; parece um Algarve muito mais recôndito, mais ligado às serras e aos trilhos pedaláveis. Reconheces isso?
Sem dúvida. Nós no Algarve temos de facto essa enchente turística, as férias, é um sítio excelente para tudo isso, o tempo no geral é bastante bom. Mas nós também temos outro lado, que é o lado da serra, e esse lado é espectacular e fantástico para treinar. Eu posso sair para o meu treino e quase não apanhar um carro durante o mesmo. Isso é um privilégio. Temos essa zona das praias e no Verão fica um bocado mais complicado, mas é possível fugir a essa confusão e ir para a zona da serra onde é sempre mais tranquilo.

MB: Ia perguntar-te se és fã desse Algarve das praias repletas de gente, mas já percebi que não…
Pois, não sou, não. Não sou muito fã de confusões no geral, prefiro sempre zonas mais calmas.

MB: Por falar em confusões, tu dirias que és a segunda portuguesa mais famosa de Boliqueime, a seguir, naturalmente, a Cavaco Silva?
HA: Por enquanto…

Não sei, eu acho que nunca pensei nisso dessa forma. É claro que eu sei que muita gente me conhece e, em Portugal, assim em povoações pequenas toda a gente se conhece. Eu vejo-me só como mais uma que se conhece assim entre as pessoas. E pronto…

MB: … não sabes bem o que dizer, não é?
Não, não [risos].

HA: É difícil competir com o Cavaco.
Muito difícil, estamos a falar de um estatuto bastante elevado.

MB: O ciclismo feminino português não vencia uma prova UCI há 31 anos, segundo apurou o Gonçalo Moreira para o TopCycling com a ajuda da Isabel Fernandes. O facto de a teres alcançado na Volta a Guatemala não é algo meio insólito? Numa localização tão distante, tão afastada do epicentro do ciclismo mundial, sem grande tradição velocipédica…
Sim, essa corrida de Guatemala era uma corrida que tínhamos no calendário o ano passado, uma corrida onde se ganhava muitos pontos UCI, algo muito importante para nós como equipa e também a nível individual. Essa vitória foi esperada e inesperada ao mesmo tempo. Nós estávamos a liderar a prova [Valentina Basilico, italiana, 21 anos, era líder e acabou por vencer a GC da competição] e isso era o mais importante, finalizar a prova com a liderança. Eu ter vencido essa chegada foi bastante bom, foi um bocado o reflexo de todo o trabalho que fiz durante os dias anteriores. E tendo sido uma das pessoas que trabalhou e contribuiu para o sucesso da equipa, às vezes também precisamos de resultados que demonstrem que nós também estamos presentes e que também temos o nosso valor.

MB: Preferias que tivesse sido noutro lugar? Ou quando eras criança e treinavas em Loulé dizias às tuas colegas de equipa que quando fosses grande ias ganhar uma etapa na Volta à Guatemala?
Não, não, isso não. É uma volta que não tem o reconhecimento e visibilidade de outras provas na Europa. Toda a gente pensa em vencer, talvez, um Paris-Roubaix, uma Volta a França, uma Volta a Espanha. Mas eu acredito que tudo tem o seu tempo e o seu momento. Se não é agora, se deus quiser será no futuro. Essa competição também foi prova de que as coisas estão num bom caminho e que tenho de continuar a trabalhar para que possa vencer nessas corridas que toda a gente sonha ter no palmarés. Vamos ver.

MB: Venceste também na Volta a Colômbia e foste quarta à geral. Uma prova que, imagino, se tornou importante para ti?
Sim, a vitória na Volta a Colômbia teve ainda mais valor, mais importância. Era uma vitória que eu procurava e que esperava porque sabia que estava numa boa fase da época, num bom pico de forma. Depois o quarto lugar na geral foi algo bastante importante também. Gostaria de ter entrado no pódio mas não foi possível. Foi, sem dúvida, um resultado importante para mim e do qual me orgulho bastante.

Na Colômbia, com a camisola da juventude envergada e as bandas de campeã nacional. (foto cedida pela Daniela)

MB: Ganhaste num contrarrelógio, que é um dos teus pontos fortes. Ao mesmo tempo, tu tens alguma capacidade para te intrometeres em chegadas rápidas. Portanto: em que é que ficamos? O que dizemos aos nossos leitores: és contrarrelogista, és sprinter, és sprinter-contrarrelogista?
Bem, eu sou uma atleta bastante completa. Safo-me bem em todos os terrenos, tanto a subir, como a descer, a rolar, a sprintar... Consigo safar-me bastante bem e isso é um aspecto a meu favor. Consigo ajudar as minhas colegas que sejam mais sprinters ou as que sejam mais escaladoras, consigo sempre dar uma mãozinha a toda a gente. Não tenho uma especialidade super sem ser o contrarrelógio. No resto, quero acreditar que sou bastante regular a todos os níveis.

HA: A uma ciclista tão versátil exige-se perguntar como é que está essa relação com as clássicas — a minha parte preferida do ciclismo, tenho esse carinho. Estás confortável nesse tipo de terreno?
Sim, eu prefiro provas de um dia, provas duras, acho que me assentam melhor. No entanto, o calendário da minha equipa não vai tanto para esse lado. Aqui em Espanha temos um calendário bastante preenchido com provas por etapas e, portanto, são mais essas as corridas que temos de fazer. Portanto, as clássicas estão um bocado suspensas, por assim dizer, mas penso que nas provas por etapas também me safo bem. Obviamente que alta montanha não é o meu forte e isso nota-se. E, portanto, em provas mais duras cabe-me a mim trabalhar mais em prol da equipa. As coisas no ciclismo são mesmo assim, o que interessa é o sucesso da equipa e não tanto os resultados individuais.

MB: É engraçado porque já em uma ou duas respostas abordaste essa questão do trabalho para a equipa e a ideia que dá é que tu queres ser líder.
Sim, há corridas em que sim, é verdade. Nós trabalhamos muito para a equipa, mas acho que todas nós, tanto eu como as minhas colegas, temos corridas que nos assentam bem. Portanto, como equipa deve-se rodar um bocado as líderes e isso, de facto, acontece. Como nós sabemos, as corridas não são todas iguais, os perfis são diferentes e cada atleta tem as suas características. Há corridas em que sou eu que tenho de trabalhar, noutras corridas serão outras. As coisas funcionam assim.

MB: Eu sei que há bocado fugiste à pergunta do és sprinter ou contrarrelogista, mas é inevitável perguntar-te o que é que queres ser enquanto corredora e isso significa também perguntar-te que provas é que sonhas ganhar — há pouco mencionaste Paris-Roubaix.
Obviamente uma etapa de uma Grande Volta, é algo bastante importante. Mas como disse, prefiro clássicas. Acho que qualquer clássica que tenha um bom nome é uma vitória bastante boa.

MB: Com empedrado ou nem por isso?
Sim, com empedrado, com tudo a que tenho direito [risos]. Quanto mais duro, melhor, não é? Se é para ser uma clássica, tem de ser com tudo.

MB: Vais marcar presença nos Campeonatos da Europa de Pista. Esta vertente tem sido uma aposta importante na tua carreira, onde já tiveste bastantes resultados muito interessantes a nível internacional. Se tiveres de escolher entre pista e estrada…?
A pista sempre teve um papel fundamental no meu processo de trabalho. Sempre foi uma aposta bastante forte por parte da Federação Portuguesa de Ciclismo e da Selecção Nacional. Sempre tivemos um grupo bastante bom, estável ao longo dos anos. Temos continuado a trabalhar ano após ano e os resultados têm aparecido. Eu tenho intenções de continuar a trabalhar e de continuar a representar o país na pista. E sem dúvida que o trabalho desenvolvido em pista tem um papel fulcral para o que faço na estrada, portanto, se eu puder conciliar as duas é o ideal. Além disso, adoro estar com a equipa. Temos um ambiente bastante bom e amigável e tudo isso também ajuda a melhorar o trabalho, ajuda-nos a crescer todos juntos. Se algum dia tiver de escolher vai ser difícil, vai depender das oportunidades. Claro que se tiver um super-contrato no World Tour…

HA: Em princípio não será preciso, há cada vez mais ciclistas a conciliar e agora até se fala da UCI começar a evitar os cruzamentos das grandes competições entre pista e estrada. Em relação à pista: tens medalhas internacionais em várias disciplinas da pista, qual é a que te sentes mais confortável e em quais é que vais participar nestes europeus?
A corrida por pontos. É a corrida que tenho feito nos últimos anos; só nos juniores é que fazia todas as corridas. Desde que subi aos sub-23 e depois aos elites tenho feito a corrida por pontos e posso dizer que é a corrida onde me sinto mais à vontade, que gosto mais de fazer e que farei, em princípio, nos Campeonatos da Europa.

MB: E quais são os objectivos para este Campeonato da Europa de Pista?
Bem, os objectivos… Como sempre, não gosto muito de delinear objectivos em termos de resultados. Acho que se fizer melhor do que o ano passado [Daniela foi 14.ª e não somou qualquer ponto] em termos de pontos, em termos de corrida, de leitura de corrida, de todas essas características, é bastante positivo. É nesse sentido que vou trabalhar. Obviamente que se o resultado for excelente, óptimo.

MB: Cá estaremos para festejar.
HA: Há pouco falavas do ambiente familiar no seio da Selecção Nacional de Pista. Tu também estiveste em Paris, nos Jogos Olímpicos de 2024, embora a correr em estrada. Como foi presenciar aqueles sucessos e até que ponto é que essa vitória também te pertence?

Foi uma sensação incrível. Ainda hoje, só recordar aquele momento é algo inesquecível, memorável, deixa arrepios só de pensar. Nós como equipa vivemos tudo muito intensamente, temos uma amizade e união entre todos muito grande e todas as vitórias e derrotas são sempre vividas com muita intensidade. Acho que sim, acho que podemos dizer que essa vitória também nos pertence; pertence a toda a equipa técnica, pertence a todas as pessoas que trabalharam connosco ao longo dos anos. E a mim, enquanto colega de equipa, motiva-me para continuar a trabalhar para algum dia ter oportunidade de viver algo assim.

HA: Sim, se a emoção para nós foi inacreditável, para vocês que estão por dentro ainda deve ter sido maior. Por curiosidade, onde e como é que viste a corrida?
Eu vi a corrida na televisão, já não estava em Paris. Vi com a minha família, mas nós estamos sempre todos conectados e fizemos várias videochamadas, falámos com eles antes da cerimónia do pódio... foi algo muito especial.

Paris ficará sempre na memória da Daniela. E de todos nós. (foto: Comité Olímpico Português)

MB: Vou provocar-te, não leves a mal. Tiveste resultados de excelência em júnior, chegando a fazer top-5 nuns europeus de estrada à frente de nomes que hoje são algumas das melhores corredoras do mundo, como Shirin Van Anrooij ou Marie Schreiber, que tem feito uma época excelente no ciclocrosse. Que desfasamento é este, isto é, entre aquilo que conseguias na altura e aquilo que elas conseguem agora, ou seja, se tivesses as condições que nomes como estes têm conseguirias estar perto do seu sucesso?
Talvez. É tudo uma questão de oportunidade. Já quando eu era júnior não tinha as mesmas oportunidades que elas, desde o início que a diferença é bastante grande. Neste momento, talvez não esteja ao nível delas, mas quero acreditar que vou chegar lá. Tenho essa intenção, continuar a trabalhar para ter as mesmas oportunidades. É factual que elas têm toda uma equipa especializada em seu redor já desde o início — bicicleta, nutrição, psicologia — e a aposta feita nos jovens é enorme. Em Portugal, a aposta também existe, mas não deixa de ser diferente. Nós temos uma equipa técnica bastante boa na Federação Portuguesa de Ciclismo, mas somos muito poucos para muitos atletas com muitas capacidades e, às vezes, é um bocado difícil lidar com tanta gente e com tantas oportunidades. Trabalhamos com o que temos. Eu tenho a sorte de poder dizer que tenho pessoas bastante profissionais naquilo que fazem ao meu lado e é graças a elas que estou onde estou neste momento. Acredito que no futuro também possa chegar a esse nível.

MB: Já existiram abordagens de equipas maiores do que aquela onde tu estás neste momento?
Não.

MB: Estás na equipa espanhola Eneicat - CMTeam. Na maior parte do ano, onde é que vives e treinas?
Eu passo o ano todo em Léon, aqui em Espanha. Claro que temos muitas deslocações, mas grande parte do ano é em Léon que estou baseada.

MB: Qual será o teu calendário em 2025?
Depois dos Campeonatos de Europa de Pista seguem-se as provas aqui no sul de Espanha, em Fevereiro. Em Março, penso que farei umas competições em Itália. No início de Abril, vamos para a América Central, tal como no ano passado, fazer El Salvador e Guatemala. Em Maio, é um mês bastante preenchido, com competições bastante seguidas e com bastante importância. Volta a Colômbia no mês de Junho. Campeonatos Nacionais, a seguir. E depois disso, logo se vê.

MB: Então vou ser mais directo: vais participar em alguma Grande Volta?
Volta a Espanha, em princípio.

MB: Onde já estiveste.
HA. Três vezes, se não estou em erro. Com que ambições é que partes?
Eu acho que as ambições também variam um bocado conforme o nosso estado de forma e todas essas variáveis. Ainda estamos em Janeiro e é difícil delinear já as ambições para a Vuelta. Tudo vai depender muito de como começar a época e de como me sentir na altura.

HA: Nós voltamos a perguntar em Abril, então.
MB: Exacto. Tens contrato até ao final de 2025. Em que pé é que está essa situação, se já há conversas para renovação e se a mesma está dependente dos teus resultados?

É ainda um assunto bastante aberto. Se tiver propostas maiores, esse será o objectivo primordial e seria, na minha perspectiva, o passo certo, seria a minha prioridade. E isso depende de muitas coisas. Vamos aguardar para ver como é que corre o ano e logo podemos falar.

MB: A Mariana Líbano vai juntar-se à Eneicat este ano. Queria perguntar-te como vês essa movimentação e, à boleia dessa questão, como é que vês o ciclismo feminino português actualmente?
A vinda da Mariana é bastante positiva. Quanto mais atletas portuguesas em equipas estrangeiras, em equipas continentais ou World Tour, é bastante bom. Eu acredito que é um passo bastante importante, cada vez mais atletas têm conseguido contratos em equipas estrangeiras e, portanto, estamos a evoluir sabendo que ainda temos muito por fazer no ciclismo feminino. Estamos a dar passos, os passos são pequenos, mas tudo é positivo.

MB: Resposta politicamente correcta, portanto.
Sim, estamos bastante atrás em Portugal. O nível cá fora está a evoluir de ano para ano, temos de ter isso em consideração. É bastante difícil fazer uma evolução rápida, mas não podemos baixar os braços agora que as coisas estão a andar. Espero que no futuro, pouco a pouco, cheguem ainda mais atletas portuguesas cá fora.

HA: Eu percebo o que dizes e é difícil porque começámos atrás e o ritmo com que o ciclismo feminino se está a desenvolver é enorme.
Precisamente. Nós estamos a evoluir em Portugal, mas cá fora as coisas estão a andar e estão a andar muito rápido. É um trabalho muito duro e árduo.

HA: E do ponto de vista da espectadora, como é que lidas com o ciclismo feminino e como é que tens acompanhado esta evolução? Se é que és espectadora, assumo que sim.
Mais ou menos, olha que não sou assim super espectadora [risos]. Eu confesso que faço as minhas competições e quando estou fora… é muitas vezes a oportunidade que tenho de desconectar um bocado das bicicletas. Mas quando acompanho dá perfeitamente para saber que o nível tem evoluído, quer nos homens, quer nas mulheres.

MB: O título desta entrevista vai ser: “DANIELA CAMPOS NÃO VÊ CICLISMO”.
HA: Sim, com muitos pontos de exclamação. 

CHOCANTE [risos].

MB: És filha de pai português e de mãe holandesa. Como é que é isso? Que história é essa? Isto, claro, sem querer entrar demasiadamente na história de amor dos teus pais.
É algo que vejo como muito positivo. Tenho uma família muito grande da parte da minha mãe, mas talvez a nossa família aqui em Portugal não tenha tantas tradições portugueses como uma família portuguesa normal, estou mais dividida. Sinto que, nesse aspecto da tradição, aprendo mais com os meus amigos que têm famílias 100% portuguesas do que propriamente com os meus pais. O meu pai também é uma pessoa bastante viajada, uma pessoa muito aberta aos outros países e às outras culturas e nesse aspecto sou um bocado aberta. Não sou 100% patriota, nem 100% tuga, mas sim, sinto-me mais portuguesa do que holandesa, até porque eu não falo a língua a 100%.

MB: Não percebo porquê, uma língua tão fácil… [risos
Exacto, nada, nada.

MB: Já que estamos a falar da tua família, podíamos aproveitar para falar de um rapaz chamado Noah Campos, campeão nacional de sub-23. A pergunta é muito concreta: achas que ele se safa ou ainda tem de comer muita sopa para chegar aos calcanhares da irmã?  
Não, ele é um atleta muito bom, que está agora a dar o seu salto. Até agora foi sempre um atleta bastante regular, a sua primeira vitória em toda a carreira foi o Campeonato Nacional de sub-23 e isso foi bastante importante para nós como família e para ele como atleta e pessoa. Penso que ele tem potencial para, no futuro, ingressar numa equipa estrangeira.

HA: Seguindo-te nas redes sociais, dá para perceber que dás particular destaque ao segundo lugar que obtiveste nos Jogos Mediterrânicos.
Esse resultado foi bastante importante não só pela corrida e por aquilo que representava a competição, mas pelo ano que foi para mim. Eu nesse ano tinha tido uma fractura da clavícula, tive um ano muito parado e muito complicado. Esse resultado foi algo muito bom e foi das primeiras corridas que fiz após regressar à competição. Nesse ano, deve ter sido o resultado mais importante que eu tive.

HA: Tenho muita curiosidade porque quase todos os atletas, sobretudo neste tipo de desportos como o ciclismo, dizem aprender a gostar do sofrimento, ou seja, o que tu fazes na vida é algo que custa muito. Como é que é essa ligação com o sofrimento?
Todos nós temos trabalhos duros. Obviamente o meu trabalho é diferente do vosso, mas não deixa de ser duro, ainda que de formas diferentes. Claro que nós atletas temos de lidar com o sofrimento físico, o desgaste, de forma diferente das outras pessoas, mas isso é uma coisa que se treina, que se aprende. Eu acredito que isso passa por uma questão muito mental, que se relaciona com as nossas ambições também. O sofrimento está sempre presente.

HA: Falaste na questão mental. És muito agarrada aos números ou corres mais por instinto?
Não, não sou muito agarrada aos números de todo. Antes de olharmos aos números temos de saber reconhecer o nosso corpo e isso é muito mais importante do que números. Guio-me muito pelas sensações. Claro que os números são muito importantes, mas não há nada mais importante do que nos conhecermos a nós próprios.

MB: Em Junho de 2022, tiveste um super resultado. Venceste uma prova amadora integrada na Taça de Espanha, mas venceste perante a Antonia Niedermaier, hoje das melhores corredoras jovens do mundo. Conta-nos um bocadinho a história dessa vitória.
Olha, foi mais um ano em que comecei com uma fractura da clavícula. Foi a minha primeira vitória pela Bizkaia-Durango, uma vitória muito importante. Foi uma corrida muito interessante, muito a meu gosto, tinha tramos de sterrato e era bastante técnica, algo de que eu gosto muito. A corrida começou a full-gas e logo nos tramos iniciais de sterrato eu por acaso entrei atrás, mas fui subindo lugares e quando dou por mim estava sozinha à frente. E continuei. Passei a meta para a segunda volta na frente, apenas com uma companheira de equipa comigo. Entretanto, a Antonia juntou-se a nós. A minha colega depois ficou para trás. E a entrar no último tramo de sterrato, já na última volta, eu furei e fiz esse tramo com o furo, mas tinha alguma vantagem — eu ganhava-lhe sempre alguma vantagem aí. Depois, ao trocar a bicicleta, ela ultrapassou-me. E fiz basicamente um crono para chegar a ela. Só a consegui apanhar no final da última volta e nos últimos dois quilómetros foi sprint até à meta.

HA: Assim pela descrição parece um corridaço.  
Foi bastante entusiasmante, por acaso. E pronto, depois tenho ali uma ponta final mais forte do que ela. Mesmo hoje acho que também teria…

MB: Concordo.
HA: Há aí um gostinho pessoal por correr fora do alcatrão também… 

Muito, gosto muito.

Daniela Campos em ação na Volta a Portugal pela Eneicat-CM Team. (foto: João Fonseca)

HA: Esperemos que voltes a ter oportunidades para te mostrares nesse terreno também.
MB: Daniela, para terminar, um clássico falso plano, umas perguntas rápidas e parvas onde tu escolhes coisas em detrimento de outras. O Henrique diz que isto no estrangeiro se chama “quick fire”.

Ok ok.

MB: Volta a Guatemala ou Volta a Portugal?
Volta a Portugal.

 MB: Pavé ou sterrato?
Sterrato.

MB: Demi Vollering ou Lotte Kopecky? 
Essa é difícil. Lotte Kopecky.

MB: Cozido à portuguesa ou paella?
Cozido à portuguesa.

MB: Paris ou Boliqueime?
Boliqueime.

MB: Lagos de Covadonga ou Praias de Boliqueime?
Boliqueime não tem praia, mas Praias de Boliqueime.

MB: falso plano ou RTP?
Acho que posso dizer falso plano, não é?

HA: Podes e deves.  
MB: Ok, obrigado, nós precisávamos mesmo disto para acabar a entrevista. Muito agradecido pelo teu tempo.

Obrigada eu pelo convite.

[Esta entrevista foi feita no dia 15 de Janeiro de 2024, enquanto Daniela Campos estava em estágio de pré-época em Espanha]