Lefevere: o génio-louco

Patrick Levefere abandona a cadeira quente. Na ressaca do seu 70.º aniversário, recuperamos a carreira de uma das mais controversas figuras do ciclismo.

Lefevere: o génio-louco
O génio-louco. (foto: Instagram Patrick Lefevere)

Em todos os desportos existem pessoas controversas. No ciclismo, existe Patrick Lefevere. Mais conhecido como patrão da estrutura Quick-Step (sob as suas diferentes designações), o belga foi sempre uma figura problemática; fez muita gente apaixonar-se por este desporto através das conquistas das suas equipas, mas também acumulou ódios dentro da modalidade — com equipas, com adeptos, com corredores. Uma pessoa que pela sua personalidade e pela sua falta de tento na língua foi colecionando, ao longo dos anos, uma lista infindável de polémicas. Mas já dizia o provérbio: todo o génio tem uma ponta de loucura; e esta é uma frase que me parece aplicar-se a Lefevere, para mim a segunda pessoa mais polémica no mundo do ciclismo desde que me lembro. A primeira é Oleg Tinkov, que esteve no ciclismo entre 2012 a 2016. Bastaram quatro anos para se tornar incomparável.

Chegou a altura do adeus — Tio Pat vai abdicar do seu posto como CEO, tomando o seu lugar Jurgen Foré — e como diz o Miguel Branco: será que vai ter uma horta comunitária? Diria que não, uma pessoa como ele vai ter sempre algo a dizer, algo a acrescentar, e quanto à horta, aguardemos pelos próximos capítulos. Uma coisa é certa: escolheu uma boa idade para pedir a “reforma”. Com 69 anos (70 anos feitos no dia 6 de janeiro), dos quais pelos menos 51 passados no ciclismo: dois como ciclista amador, quatro anos como ciclista profissional e, por fim, 45 anos como diretor-desportivo e diretor-geral nas equipas por onde passou.

Lefevere a festejar com Phil Lowe a Vitória de Remco na Vuelta a España 2022 (foto: Instagram Patrick Lefevere)

Patrick Lefevere, o ciclista

Começou em 1974, com 19 anos. Como amador tem uma vitória de etapa no Tour de Wallonie e em 1975 somou um triunfo no Olympia's Tour e ainda foi convocado para o campeonato do mundo de amadores onde terminaria em 24.º. Nesse mesmo ano, recusou propostas da Molteni, equipa na qual corria Eddy Merckx, e outra da Flandria, tudo porque ganhava mais dinheiro a trabalhar com a família do que ganharia se assinasse por uma equipa profissional.

Ainda assim, acabaria por ceder. Ao longo da sua curta carreira profissional, de apenas cinco anos, Lefevere representou duas equipas (Ebo-Cinzia, em 1976-77, e Marc Zeepcentrale - Superia, em 1978-79), conquistando mais oito vitorias: em 1976, ganha uma prova de um dia em La Panne e uma etapa na Vuelta a Levanteonde vale a pena destacar que em sexto lugar ficou o nosso Joaquim Agostinho; no ano seguinte mais duas clássicas, a Gullegem Koerse e a Maaslandse Pijl; no ano de 1978, já na nova equipa, volta a ganhar desta vez por três ocasiões: na clássica Omloop der Beide Vlaanderen, a atual Kuurne - Brussel - Kuurne; naquela que é considerada a sua maior vitória da carreira, a etapa 4 da Volta a Espanha de 1978; e na clássica GP Raf Jonckheere.

1979 é o derradeiro ano em cima da bicicleta para Lefevere. Após uma primeira parte de época bastante boa — com uma vitoria na clássica Omloop der Grensstreekc e mais três top-10 (um deles na Le Samyn) e mais dois top-20 —, decide colocar fim ao seu trajeto profissional como ciclista. Tinha apenas 24 anos e percebeu que não era aquilo que queria continuar a fazer, não queria fazer todos os sacrifícios inerentes à vida de corredor pelo valor que lhe pagavam.

E é aqui que o seu legado como diretor-desportivo começa. É ainda no decorrer do ano de 79 e logo dentro da estrutura da equipa que representava, a Marc Zeepcentrale - Superia, cargo que ocupou três dias após ter pendurado a bicicleta. É impossível garantir, mas talvez os responsáveis da equipa tenham visto em Lefevere alguém confiável, com futuro pela frente, sobretudo estando conscientes do seu elevado nível de escolaridade para aquela época e conhecendo a sua experiência de trabalho nas áreas de gestão e contabilidade que detinha em virtude do negócio familiar.

Patrick Lefevere (à direita) a vencer a Kuurne - Brussel - Kuurne ao sprint frente a Ludo Dierickx. (foto: Marcel Anckaert | KOERS)

O início do legado Lefevere

Em 1980, já com 25 anos e o seu primeiro ano completo como diretor-desportivo dentro da mesma equipa, o Tio Pat alcança 11 vitórias, mais quatro do que no ano anterior, e estas foram mais importantes. Entre elas, uma etapa no Critérium du Dauphiné e outra na Volta à França — uma amostra do que viria a ser a sua carreira como diretor-desportivo e diretor-geral.

Já nos anos de 1981-82, na equipa da Capri, onde se reencontra com antigo ciclista Walter Godefroot (adversário na estrada) e assume funções de diretor-geral, obteve algumas vitórias importantes como etapas no Tour e grandes clássicas. Em 1985, novamente pela mão do Godefroot apontado como um dos seus maiores mentores a nível de gestão —, Lefevere entra para a recém-criada equipa da Lotto, a terceira estrutura com mais longevidade na história do ciclismo (atrás da Movistar e da Visma), onde viria a permanecer durante três anos.

A confirmação como gestor

Entre 1985 e 1991 esteve em três estruturas diferentes alcançando um total de 89 vitórias. Após esse período é contratado para a GB-MG Maglificio, onde alcança um total de 98 vitórias ao longo de três anos e em vários terrenos e traçados distintos — etapas em provas de uma semana, Grandes Voltas e muitas muitas clássicas. Mas a vitória mais importante talvez tenha sido a conquista da Volta a Flandres em 1993, o seu primeiro Monumento à boleia do enorme Johan Museeuw, o famoso Leão da Flandres, que chegava também aqui ao primeiro de seis Monumentos que viria a alcançar na carreira.

Lefevere com Museeuw como campeão do mundo. (foto: pezcyclingnews.com)

Em 1995, a estrutura GB-MG Maglificio une-se com a Mapei (passa a Mapei-GB) e Lefevere entra assim num ciclo de seis anos, de 1995 a 2000, que foi um autêntico camião de sucessos: um total de 363 vitórias! Conquistou a sua primeira Grande Volta com Tony Rominger (Giro de 1995) e também a mítica tripla em Roubaix na vitória de Johan Museeuw em 1996 — Gianluca Bortolami e Andrea Tafi foram segundo e terceiro, respectivamente. Pódio que seriam capazes de repetir em 1998 — Franco Ballerini, Andrea Tafi e Wilfried Peeters — e 1999 — Andrea Tafi, Wilfried Peeters e Tom Steels.

 Lefevere com o trio vencedor da Paris-Roubaix 96: Museeux, Bartolami e Tafi (foto: pezcyclingnews.com)

Em setembro de 2000, Lefevere foi diagnosticado com um tumor pancreático. Após a remoção do mesmo e passado uns meses, já no decorrer do ano 2001, foi declarado livre da doença, estado que se mantém até aos dias de hoje.

Em 2001, assumiu o comando da Domo-Farm Frites, onde habitavam alguns ciclistas de duas das suas antigas equipas que acabaram no ano de 2000, a Mapei e a TVM.

Projeto de uma vida: Quick-Step

Em 2003, Lefevere começa aquele que será o projeto da sua vida, lado a lado com a empresa Quick-Step que já tinha sido co-patrocinadora da Mapei nos últimos dois anos do projeto (1999-2000) e que se mantém desde o primeiro dia até aos dias de hoje.

Ao longo de 22 anos no comando da equipa obteve 981 vitórias, conquistando todo o tipo de corridas, brilhando em todos os terrenos, sendo a estrutura com mais vitórias de sempre: mais 333 que a atual Team Visma | Lease a Bike que já existe desde 1984, na altura com a denominação Kwantum Hallen - Decosol. Durante muito anos foram a equipa mais temida nas clássicas e nas etapas ao sprint, sendo a equipa com mais sucessos na temporada em 11 dos 22 anos de liderança de Lefevere e nove deles consecutivos: de 2013 a 2021. Uma das principais peças no sucesso da equipa foi Tom Boonen, o ciclista que alcançou um total de 120 triunfos ao longo dos seus 15 anos ao serviço da equipa. Foi o ciclista mais vitorioso ao serviço de Lefevere e da Quick-Step, conquistando quatro Paris-Roubaix, duas Voltas a Flandres, três Gent-Wevelgem, cinco E3 e múltiplas etapas no Tour de France e Vuelta a España. Nos restantes lugares do pódio dos ciclistas com mais vitórias na equipa estão Mark Cavendish com 59 vitórias em cinco anos e Remco Evenepoel com 57 êxitos em seis anos.

Lefevere com Tom Boonen (foto: gva.be)

Ao longo dos anos foi criado em torno da equipa um espírito de união que decidiram apelidar de “Wolfpack”, que parecia ter como filosofia-base a ideia de que cada corredor estava ao serviço da equipa, os egos eram colocados de lado e, se fosse necessário, uma possível vitória individual era substituída pelos interesses da equipa. Iam para as provas com vários líderes e jogavam em equipa em várias frentes. Exemplos dessa estratégia são as vitórias de Niki Terpstra na Paris-Roubaix 2014 ou na Volta a Flandres de 2018 — situações em que, à partida, o favoritismo estava apontado a outros nomes dentro da equipa mas acabaria por ser o neerlandês a vencer — pensemos em Boonen em Roubaix ou Gilbert na Flandres.

Mas nem só de sucessos táticos se fez a história da Quick-Step na era Lefevere. Recordemos a Omloop Het Nieuwsblad 2015, onde Terpstra, Boonen e Stijn Vandenbergh (três Quick-Strep) não conseguirem bater Ian Stannard, atacando o britânico à vez.

Lefevere com Terpstra após vitória em Roubaix 2014 (foto: rtbf.be)

Dados da carreira como diretor-desportivo e diretor-geral: 1979-2024

Ciclistas em representação da Equipa
Classificação geral de Grande Voltas – 2 (1 na QuickStep)
Etapas em Grandes Voltas – 195 (124)
Monumentos – 35 (22)
Vitórias Totais – 1625 (981)

Ciclistas que ganharam o Campeonato Mundial
Campeões do Mundo – 11 (7)
Campeões do Mundo de ITT – 8 (8)
Campeões do Mundo de TTT – 4 (4)

Ciclistas que ganharam o Jogos Olímpicos
Campeão Olímpico – 2 (2)
Campeão Olímpico ITT – 1 (1)

Factos curiosos

  1. Após a rejeição de Lefevere à Molteni em 1985, equipa pela qual corria Eddy Merckx, a carreira de Lefevere como diretor-desportivo e diretor-geral cruzou-se várias vezes com o nome da família Merckx. Merckx enquanto marca patrocinadora e marca de bicletas colocou o nome e bicicletas em três das equipas geridas por Lefevere e ainda foi fornecedora de bicicletas no projeto Domo-Farm Frites. E de 1999 a 2002 Axel Merckx foi ciclista em duas das equipas geridas por Lefevere.
  2. Lefevere geriu nove equipas no total. Apenas três delas já existiam antes de ele entrar na estrutura: uma delas foi a primeira equipa onde já era ciclista, a Marc Zeepcentrale - Superia; a segunda foi a Domex - Weinmann - Eddy Merckx, cuja entrada de Lefevere coincidiu com a junção do naming sponsor de Merckx; a terceira foi a Mapei-GB, embora aí ele já viesse da estrutura da GB quando se dá a fusão com a Mapei. Em todas as outras seis equipas, ou foi contratado como diretor-desportivo para a criação da equipa ou fez parte da criação da mesma como diretor-geral, como é o caso da Quick-Step.
  3. Além da já mencionada tripla na Paris-Roubaix, em que a Mapei ocupa os três lugares pódio na mítica prova francesa em 1996, 1998 e 1999, este foi um feito que Tio Pat repetiria por mais 12 vezes ao longo da carreira noutras corridas.

“Todo o génio tem uma ponta de loucura”

Na minha opinião, Patrick Lefevere foi um génio. No ciclismo, é muito comum assistirmos a projetos que entram fortes, vão estando alguns anos em alta, mas que acabam por desaparecer ou perder gás. A Quick-Step foi quase sempre muito igual a si própria, mantendo sempre a filosofia de baixo investimento e alto rendimento, vitórias e espetáculo.

Alguns ciclistas tinham enorme rendimento desportivo na Quick-Step e mais tarde, naturalmente, queriam ganhar mais dinheiro em virtude de terem melhores resultados do que os outros. Mas assim que encontravam esse novo rumo, longe do "Wolfpack", os seus resultados pioravam abruptamente, principalmente os sprinters. Após saírem da equipa poucos foram os que conseguiram voltar a ter rendimento semelhante, pensemos em Sam Bennett, Elia Viviani, Fernando Gaviria, Marcel Kittel, entre outros, mas o mais evidente foi o caso de Mark Cavendish, que sai da Quick-Step e tem cinco anos completamente longe do nível que outrora tinha alcançado.

Chegou a dizer, em lágrimas, que talvez fosse altura de se retirar, em 2020, após lançar Phil Bauhaus para uma vitória ao sprint. No ano seguinte, sai da Bahrain e assina pela Quick-Step novamente e, quando já não se esperava nada a nível desportivo, a equipa consegue “ressuscitar” o velho Mark Cavendish, conquistando a camisola verde do Tour de France com quatro etapas no bolso do britânico.

Como aparecimento de Remco Evenepoel como superestrela, um miúdo prodígio com possibilidade de ganhar em vários terrenos — desde clássicas, Monumentos e provas por etapas —, só após a vitória na classificação geral da Vuelta 2022 é que a filosofia da Quick-Step se tem vindo a alterar, estabelecendo-se em torno de Remco. O jovem belga tem como ambição mais vitórias em Grandes Volta e por isso a equipa começou a contratar corredores para o bloco da montanha e não tanto para clássicas e sprint. Apesar disso, a Quick-Step continua, no papel, a ter uma equipa forte neste tipo de corridas. É claro que se olharmos para clássicas que não são disputados ao sprint ou clássicas mais duras para uma eventual vitória de Evenepoel continuam a deixar a desejar, ainda que seja preciso dizer que os seus adversários são temíveis: Wout van Aert, Mathieu van der Poel e Tadej Pogačar. Vamos ver como vai correr este ano, se conseguem um equilíbrio entre blocos de geral e bloco de clássicas, porque o bloco de sprint parece respirar saúde com Tim Merlier e Paul Magnier.

No fim do ano de 2023, houve o rumor da junção da Quick-Step com a Visma, que na altura passava dificuldades de patrocinador porque a Jumbo deixou de patrocinar a estrutura. E claro que Lefevere metido ao barulho, talvez numa tentativa de rivalizar com a UAE e a Alpecin e de voltar a ter uma estrutura mais competitiva e dominadora como em tempos idos. Várias foram as críticas feitas por parte de figuras públicas ligadas à história da Quick-Step, mas, felizmente, a meu ver, as negociações foram um fracasso.

Vários foram os conflitos, os mais recentes com Julian Alaphilippe e sua esposa Marion Rousse ou os desagradáveis comentários sobre o ciclismo feminino, ainda em 2021, afirmando que não compensaria investir no mesmo. No entanto, em 2022, Lefevere investe numa equipa feminina: a NXTG Racing, atual AG Insurance - Soudal Team.

Houve ainda o conflito com pai de Evenepoel, mas nem só de atritos se conta a história do Tio Pat. Em 2008, Tom Boonen é apanhado com cocaína na Bélgica. O acontecimento vira notícia em todos os jornais e logo emerge uma campanha para forçar a organização da Volta a França a não deixar participar o corredor belga na prova mais importante do mundo. Como resultado, os primeiros a rejeitar a sua participação foram os organizadores do Tour de Suisse e, à boleia disso, não foi ao Tour de France defender a camisola verde conquistada no  ano anterior. Lefevere e os patrocinadores da equipa, no entanto, decidiram manter Boonen na formação belga por tudo o que ele já tinha dado à equipa e, visto que este não foi suspenso pela UCI, continuou a participar nas provas em que foi aceite chegando ainda a estar na Vuelta desse ano. Lefevere foi uma das pessoas que mais ajudou Boonen nesse momento difícil a nível pessoal, mas também foi um dos que o multou a nível profissional pois o que se tinha passado tinha afetado futuros negócios de investimento na equipa para o ano seguinte e ele tinha de “sofrer as consequências dos seus atos”.

É por isto tudo e por muito mais que provavelmente ficou por escrever, que acho Patrick Lefevere um génio na gestão das suas equipas, mas também um louco.