Maria Martins: "O que nos faz ficar aqui são os sonhos, é sempre a ideia de superação"

Depois da medalha de bronze no Campeonato do Mundo de Pista (omnium), uma conversa com Maria Martins, a melhor corredora portuguesa da atualidade.

Maria Martins: "O que nos faz ficar aqui são os sonhos, é sempre a ideia de superação"
Maria Martins num gesto frequente (fotografia cedida por Maria Martins)

É a melhor corredora portuguesa da atualidade. Depois de mais um ano francamente positivo, com uma medalha de bronze no Campeonato do Mundo de Pista (omnium) e de mais uma mão cheia de belos resultados em estrada, conversámos com Maria Martins sobre o que é isto de ser ciclista profissional. Isso e muito mais. Basta fazer scroll down.

A natureza tem uma aptidão particular para o empurrão inicial. Apesar de ser ribatejana (Moçarria, Santarém) foi na paisagem lisboeta que encontrou as duas rodas. Na humidade esverdeada do Parque Florestal de Monsanto, nos seus trilhos embaraçados, à boleia de um tio paciente, inaugurava-se uma futura estrela do ciclismo nacional. Maria Martins, 23 anos, armário cheio de medalhas sacadas na vertente de pista, começou no BTT. E como quem tudo quer tudo perde, foi necessário, a certa altura, optar pela estrada e pela pista abdicando dessa paixão primordial. Hoje sabemos que soube escolher. Além das inúmeras medalhas conquistadas em sub-23 em Europeus e Mundiais de pista, foi, ainda em Outubro, bronze no Campeonato do Mundo de Pista (omnium) e em Agosto ficou no sexto lugar do Campeonato Europeu de Estrada, em Munique — atrás de vedetas do sprint como Lorena Wiebes e Elisa Balsamo. A isto junta um diploma olímpico na última edição dos Jogos Olímpicos, em Tóquio, onde foi sétima, também em omnium.

Afirma que para si “a pressão é um privilégio”. Corre no estrangeiro desde 2018, primeiro em Espanha, na Sopela Women’s Team e depois na Drops, actual Le Col - Wahoo, equipa inglesa, com quem tem contrato até 2023. Ainda assim, admite que esta não é uma vida propriamente folgada. Fun fact: tem como sonho paralelo o de ser piloto de aviação, curso que já frequenta. E já agora: a sua alcunha, “Tata”, vem de batata, pois claro. Senhoras e senhores, Maria Martins.

Quando telefonei para marcar a entrevista disse-me que está em estágio. Podemos saber de que estágio se trata?

É um estágio de preparação para a próxima época. Estou em Tenerife.

Com a equipa?

Não, não, é um estágio pessoal.

Por quanto tempo?

Duas a três semanas, foi algo que preparei em conjunto com o meu preparador e treinador.

Apetece perguntar quando é que uma ciclista profissional não está em estágio, ou em competição, não é? Está sempre a trabalhar, no fundo. Quando é que foi a última vez que teve férias?

Por acaso fiz férias antes de vir para este estágio, cerca de duas semanas.

Depois dos Mundiais de pista?

Exatamente.  

E deixa a bicicleta de lado? Consegue parar?

Sim, sim, conseguimos porque também programamos para o conseguir.

Esta é uma profissão e um estilo de vida muito exigente, que prevê uma dedicação constante. A Maria tem 23 anos e se calhar não pode fazer coisas que as pessoas da sua idade também fazem. Imagino que nem seja uma questão para si uma vez que está a fazer aquilo de que gosta.

Para mim a palavra-chave no desporto é a consistência, a consistência ao longo dos anos. Sinto que tenho tido um percurso ascendente, tenho vindo a melhorar ano após ano, mantenho-me competitiva nas provas em que participo. O que nos faz ficar aqui são os sonhos, os nossos objetivos, é sempre a ideia de superação.

Nasceu na zona de Santarém. Como é que o ciclismo aparece na sua vida e pela mão de quem?

Eu nunca tive ninguém na família ligada ao ciclismo. Mas a pessoa que mais me influenciou para o mundo das bicicletas foi o meu tio, ainda que não tenha sido alguém a empurrar-me para a zona das competições e para esse meio. Íamos para Monsanto mas sempre numa coisa mais de lazer, adorava percorrer aqueles trilhos. No fundo, eu gostava muito de fazer esses passeios e ele fazia-me a vontade.

Diz Monsanto em Lisboa, certo?

Sim, sim, ele é de lá. Eu tive uma parte da minha vida, até aos 8 ou 9 anos, em que estive em Lisboa a estudar, mas sempre vivi em Santarém. Só que a minha avó e o meu tio são de Lisboa então dava para ir alternando. A minha mãe tem um colégio e foi nesse colégio que também cresci e vivi a minha infância. A partir de um certo momento fiquei só por Santarém, a partir do sétimo ano, por aí. Mas pronto, no fundo, acho que o meu tio foi o principal culpado, entre aspas, por meter aqui o bichinho das bicicletas.

Foi sétima classificada nos Jogos Olímpicos, em omnium. (fotografia cedida por Maria Martins)

Quando é que se dá a transição, isto é, quando é que começa a perceber que isto é uma coisa séria para si?

Foi no escalão júnior, há cerca de cinco anos, quando tive de abdicar de uma vertente, porque na altura estava a fazer estrada, pista e BTT. Decidi que tinha de deixar o BTT, que foi a vertente onde eu comecei efetivamente a praticar ciclismo…

Pois, Monsanto está muito ligado ao BTT.

Sim, precisamente, primeiro foi o BTT só depois a pista e a estrada. Mas o calendário era de tal forma preenchido que em júnior de segundo ano decidi mesmo optar pela estrada e pela pista, sendo que me parece que são duas vertentes perfeitamente conciliáveis, pelo menos eu tenho conseguido.

São muitos os casos de ciclistas que conciliam essas duas vertentes. Mas isso deve significar uma exigência considerável na calendarização da temporada, são momentos e preparações diferentes.

Sim, isso é a principal dificuldade quando conciliamos estas duas vertentes, temos objetivos nos dois lados e há uma série de variáveis que têm de ser estruturadas para que depois a época não seja nem muito pesada, nem pouco produtiva a nível de competição. Neste momento é a minha principal dificuldade. De resto, acho que a pista dá-me muitas coisas para a estrada e vice-versa.

Mas não sente que se se focasse especificamente numa delas poderia obter melhores resultados?

Sinceramente, não vejo isso dessa maneira. As coisas têm estado a correr bem e se assim é porquê mudar, não é? É claro que é preciso ter esse cuidado de que falávamos na calendarização e na escolha das competições que mais se adequam aos objetivos.

Consegue dizer alguma memória que a marcou decisivamente enquanto espectadora de ciclismo?

Lembro-me que quando comecei a estar mais ligada à estrada foi na mesma altura em que o Rui Costa foi campeão do mundo e esse Mundial marcou-me muito e marcou-nos a todos os portugueses, parece-me, no meu caso era uma miúda com sonhos e aquele momento foi especial. Depois, os Jogos Olímpicos de uma forma geral. Adoro ver todas as modalidades, sempre o fiz, sempre fui uma fã de desporto no geral, não me limito apenas ao ciclismo, tiro referências de ciclistas e de atletas pela personalidade e atitude que têm.

Sexto lugar nos europeus de estrada, bronze nos mundiais de pista (omnium), quarto lugar nos europeus de pista (scratch), quatro top-10 em clássicas (sendo que três deles foram top-5, incluindo um pódio em Fourmies). É certo que não há diploma olímpico nem um título de campeã nacional, mas ainda assim, acha que podemos dizer que este foi o melhor ano da sua carreira?

Não. [risos] Acho que não foi o meu melhor ano. O melhor ano a nível de realização pessoal foi mesmo o ano dos Jogos Olímpicos…

2021, portanto.

Sim, onde também consegui o título de campeã europeia de sub-23 no omnium. E uma série de outras coisas. Obviamente que este bronze no Mundial de pista e o sexto lugar no Europeu de estrada de elites também foram bastante bons para mim, principalmente porque tive ali um momento complicado e menos positivo que me fez estar fora de competição durante cerca de quatro meses, este ano. Comecei o ano de forma sólida, tive alguns resultados bons, outros menos bons, mas acho que foi razoável e imediatamente após esse período, no final de Abril, início de Maio, tive uma situação a nível de saúde, nada de grave, mas que me impossibilitou de treinar em condições e fui obrigada a parar para respeitar a recuperação do corpo. Mais tarde quando já estava de volta aos treinos tive Covid-19 e isso também me impediu de fazer uma série de competições nessa altura. Depois volto  a competir no Europeu de estrada e daí o resultado ser muito especial para mim porque confesso que estava meio às cegas, não sabia como é que estava, é sempre aquela incógnita.

E foi um sprint com algumas das melhores do mundo.

Sim, é verdade, foi um regresso em grande. E a partir daí as coisas ficaram muito bem encaminhadas, fiz algumas clássicas com a equipa e, pronto, finalizar a época com um resultado assim neste Mundial… foi lindíssimo para mim.

O que diria que ficou a faltar? Sobretudo que fosse um objectivo mais concreto e planeado.

Não olho muito a isso, sinceramente. Tento sempre pensar “se foi possível foi, se não foi possível não aconteceu”. É bom termos noção daquilo que fizemos e tirar alguma aprendizagem das coisas menos boas para o futuro, mas são dores de cabeça que não tenho, tento focar-me naquilo que consigo controlar, o resto não dá.

Olhando para o seu ano em estrada não fez uma única prova por etapas. É um mero acaso? No passado já correu o Giro da Toscana, Volta à Comunidade Valenciana, Lotto Belgium Tour, WNT Madrid Challenge by La Vuelta… E não correr nenhuma prova por etapas este ano significa que não foi ao Tour de France, onde a sua equipa esteve presente. Porque é que isso aconteceu?

Infelizmente tinha três ou quatro provas por etapas marcadas para aquele período que há bocado referi, em que de uma forma ou de outra, por problemas meus ou alguns imprevistos da equipa a coisa acabou por não acontecer. Obviamente não foi propositado e este ano queremos introduzir mais esse tipo de provas. Em relação ao Tour, acho que as minhas características não se adequavam propriamente ao percurso e obviamente que um Tour é um Tour, mas tendo oportunidades que seriam melhores para mim decidi não me “candidatar”. Claro que a decisão não é nossa, mas podemos sempre dar a nossa opinião e propormo-nos e mostrar interesse em prova X ou Y. Eu não mostrei esse interesse e portanto foi menos uma. E não me sinto arrependida, mesmo sendo o primeiro Tour, acho que não é por aí, a equipa estava bem representada e fiquei feliz de as coisas terem corrido bem para a equipa [três top-10 da Maike Van der Duin, dois deles top-5]. E para o ano logo veremos.

Outra ausência este ano foram os mundiais de estrada, onde não esteve por opção da federação portuguesa de ciclismo. O presidente, Delmino Pereira, disse na altura: “Não temos 500 mil euros, que é o que vai gastar por exemplo a França. Por isso, fizeram-se opções e vamos apostar em quem nos dá mais garantias de resultados, que são as elites e os juniores masculinos”. Como é que leu estas declarações e como é que se sentiu em relação a isto tudo? Estes dois escalões, os elites e os juniores masculinos davam mesmo mais garantias que a Maria ou que a Daniela Campos, por exemplo?

Primeiro, não faço parte do departamento financeiro da Federação, eles é que sabem o dinheiro que têm para cada competição, eu não faço ideia. Não posso nem julgar nem dizer nada em relação a esse tópico porque não é a mim que me compete. Em segundo lugar, no meu caso, falei com o seleccionador e na altura decidimos que não sendo uns Mundiais favoráveis às minhas características não fazia sentido ter esses gastos e até mesmo para mim acho que seria uma viagem desgastante, onde se perdem muitos dias de treino e que quando se está na preparação para um Mundial de pista não é algo positivo. Foi também uma opção minha não ir. Em relação aos outros escalões não sei, não é a mim que me compete falar.

Em 2021, foi campeã europeia de sub-23 em omnium, uma das medalhas mais especiais para corredora de Santarém. (fotografia cedida por Maria Martins)

Ainda que existam melhorias, o ciclismo feminino continua muito longe das condições que existem no lado dos homens. Gostava de falar-lhe do facto de no circuito feminino não existir propriamente um escalão de sub-23. A Rouleur fez um artigo muito interessante há dois meses que fala precisamente disso, e de alguns casos de algumas ciclistas que por virem directamente de juniores para elites sentiam uma diferença absurda em termos de ritmo, não conseguindo acabar provas, etc, algumas deixaram o ciclismo por não conseguirem lidar com isso. A Maria tem 23 anos e está fora desde 2018, portanto teria uns 18 anos, a correr no estrangeiro. Como é que vê esta questão?

Neste momento já não sou sub-23, mas o ano passado era e sei bem o que é essa diferença de andamentos quando vimos de juniores. Quando fazemos essa transição é que percebemos que era mesmo importante existir esse escalão intermédio para conseguir manter as atletas motivadas e com vontade de competir, porque, de facto, uma júnior que vem para elites por vezes está a correr com atletas com 30 e tal, 40 anos, é uma grande diferença. Era muito importante existir um conjunto de provas apenas para o escalão de sub-23 e isso acontece nos masculinos há anos, já começa a existir para os femininos, mas continua a ser difícil encontrar um pelotão de sub-23 femininos e existir provas diferenciadas, provas por etapas e para estas idades.

Nos Mundiais a Guazzini foi campeã mundial de sub-23 em contrarrelógio correndo em conjunto com as elites. A Fisher-Black igual mas na prova de estrada.

Sim, acho que acaba por ser bom, mais tarde ou mais cedo isto teria de acontecer, não se percebe porque é que há uma camisola em disputa de sub-23 nos masculinos e não nos femininos. No entanto, acho que ainda não temos um pelotão capaz, estruturado, sério, para criar essas provas autónomas, portanto, neste momento, tendo em conta o que existe, acho que é preferível corrermos todas juntas e separar a classificação.

E estamos ainda longe dessa realidade porque falta interesse, dinheiro…

Claro, é a mesma lengalenga de sempre, já sabemos, faltam essas coisas todas.

Tem contrato com a Le Col - Wahoo até 2023, já houve conversações para uma renovação?

Neste momento está assinado para 2023 e depois para o ano é ver quais são as oportunidades que aparecem… É ver, não sei. Neste momento só penso em 2023 porque estou bem na equipa em que estou e tenho contrato por mais um ano. E mais tarde, ali para meados da época é quando se começa a trabalhar mais nesse assunto.

Quais são os seus grandes objetivos para 2023?

Especial foco na pista, Europeus, Taça do mundo e Mundiais. E depois na estrada o Paris-Roubaix.

Onde já ficou em 19.º lugar.

Sim, o período das clássicas é o meu maior foco. Depois claro também há outras provas onde quero estar bem. E quero tentar a minha primeira vitória com a equipa.

O que diria que falta nesse sentido? Diria que se tivesse o comboio da Lorena Wiebes seria mais fácil vencer?

Tem que ver com várias coisas. Obviamente que ter um bom comboio ajuda sempre, mas a Lorena é um talento e uma atleta única e mesmo que a equipa a colocasse no sítio certo se ela não fosse realmente boa não ganhava.

É curioso que foi bronze nos Mundiais de pista no local onde vão decorrer os jogos olímpicos de 2024… Sem pressão.

A pressão para mim é uma honra, é um privilégio. Mas sim, vai ser a pista olímpica, mas acho que todos os Mundiais até lá vão ser muito importantes, independentemente de serem em Paris ou noutro lado qualquer.

É verdade que quer ser piloto de avião? De onde é que vem o fascínio?

Do interior. [risos] Simplesmente é um segundo sonho, paralelo ao desporto.

Mas já experimentou?

O quê?

Pilotar.

Não, não é como andar de carro. [risos]

Eu sei, eu sei, mas podia ter feito uma aula experimental ou assim.

Ainda não, ainda não, estou na parte teórica ainda.

Então já está a frequentar o curso.

Sim, sim, iniciei o curso via modelar, posso fazer através de e-learning e permite-me estudar através do computador sem ter de estar presente nas aulas. Demora mais tempo, mas sempre é possível ir-se fazendo.

Quem sabe daqui a uns tempos…

Sim, é o que eu quero.

Mas isso numa fase posterior ao ciclismo, certo?

Pois, não é compatível, não seria possível coincidir as duas coisas. O que digo é que consoante a forma como o ciclismo correr aí vou ter de ponderar e tenho a cabeça fria para tomar as decisões que forem preciso tomar. Viver do ciclismo poucos conseguem, do ciclismo e do desporto, é a realidade do nosso país e há que aceitar as coisas como elas são. No meu caso é isso que tenho na cabeça, a partir do momento em que as condições não forem suficientemente sustentáveis, a partir do momento em que deixar de ser razoável, aí terei de decidir. Mas até lá vou fazendo o que tenho a fazer, o que gosto, neste momento sou profissional de ciclismo e estou feliz a fazê-lo.

E esperemos que assim continue. Posso perguntar de onde vem a sua alcunha: “Tata”?

Foi o meu tio, o mesmo que me introduziu às bicicletas. Ele dava sempre uma alcunha engraçada a todos os sobrinhos, quando eram pequeninos. Uma era a cenourinha, outra era o peanuts e depois havia a batata. Eu era a batata.

Ah, vem de batata, claro. Finalmente esclarecidos. Muito obrigado, Maria.

Obrigada, eu.