Beatriz Pereira: "Como júnior era trepadora, como elite não sou bem nada"
Aos 20 anos, a corredora da Bizkaia-Durango acabou de se estrear em grandes voltas pouco depois de se ter sagrado campeã nacional de contrarrelógio sub-23 e vice-campeã nacional de elites. Uma conversa sobre muita coisa, onde o ciclismo é só uma desculpa.
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Para Beatriz Pereira, ser apelidada de "badass" é um elogio. E assim atalhamos caminho, dizemos, sem carência de sublinhar, que estamos na presença de uma mulher sem medo, de megafone sempre em riste, venha lá quem vier. Seja pela forma como através das redes sociais e entrevistas defende a segurança dos ciclistas em estrada ou pela forma como critica a Federação Nacional de Ciclismo por não dar o mesmo tratamento a homens e mulheres — como foi o caso recente dos Campeonatos Nacionais de Ciclismo, onde não foi entrevistada por nenhum elemento da dita instituição, ao contrário dos colegas masculinos do seu escalão. Diz para ver se alguém, em tais portas que parecem não querer abrir-se, a ouve.
Não é de agora, da sua carreira, a preocupação com uma comunicação justa e certeira; vem de antes, vem de um lugar pessoal, de querer para si e para os seus uma convivência inconformada e progressista. Como já deve ter dado para perceber, esta entrevista vai muito além da beira de estrada e das ilhas de tráfego. Vai ao deserto que é a ausência de um pelotão e de um calendário internacional de sub-23 feminino e de como isso é desastroso para as corredoras; vai à falta de investimento no desporto em Portugal e de como só se consegue chegar relativamente longe no ciclismo com ajuda financeira familiar; vai à experiência de uma grande volta sabendo que aquele não era o seu ritmo; mas também vai ao reggaeton e ao popping; e ainda vai ao Velogames.
Vai a uma data de sítios. Uma corredora nunca é só uma corredora e no caso de Beatriz Pereira dá-se o caso de esta nem saber bem afinal que tipo de corredora é: "Eu costumo sempre dizer: quando chegas a sub-23 não fazes nada bem." O tempo assim o dirá. Por enquanto, talvez esta conversa possa ajudar a perceber que tipo de pessoa é Beatriz Pereira. O que já não nos parece nada mau.
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Bom dia, Beatriz. Queria começar com um aviso: são sete e meia da manhã, por isso, se a entrevista não for propriamente ritmada não estranhes, ok?
Ok, ok.
Consegues falar a esta hora? Bom, quem consegue pedalar também deve conseguir falar, certo?
Sim, acho que sim, eu falar nunca tenho problemas, mas sim, também acordei há pouco tempo, mas acho que é tranquilo.
É uma prática comum? Ou seja, quando dás entrevistas, devido aos treinos, é sempre a esta hora ou é uma estreia?
É uma estreia, eu diria.
Pois. Portanto, falso plano em grande. Vamos ver como é que vai correr. Então vamos a isso. Deste uma entrevista para o writebikerepeat, no final de Junho, e a Emma Bianchi, a jornalista em questão, descreve-te assim: "Beatriz Pereira is 19 years old and already an accomplished badass." Queres comentar?
Posso comentar. Embora, não sei bem o que dizer, eu não sei muito bem reagir a elogios.
Exacto, é um elogio, claramente.
Eu diria que sim, não?
Claro, claro. É importante perceber se para ti é um elogio.
Na minha visão é. Mas pronto, foi ela que decidiu colocar isso. Em momento nenhum durante a conversa se falou de eu ser ou não uma "badass".
Mas vem do quê? Eras bully no recreio da escola?
Não, de todo. [risos] Não era bully até porque passava pouco tempo na escola, o tempo que passava na escola era a tentar estudar e aprender ao máximo porque quando chegava a casa tinha de treinar e tratar das minhas coisas do ciclismo, portanto não, nunca fui esse tipo de pessoa. Mas eu diria que é por ser uma pessoa que tem uma personalidade extremamente forte e quando tenho de bater com o punho na mesa faço-o e pronto. E acho que a isso se pode chamar uma "badass".
Certo, esta coisa de não ter pudor em dizeres o que pensas em canais de comunicação como o Twitter, por exemplo. Já agora: a tua família e amigos concordaram com a ideia?
Eu não sei se a minha família leu a entrevista, a minha família já não lê nada. Não quero dar uma de famosa nem nada do género, mas eles já não lêem quase nada. Quer dizer, eles até vão lendo, mas o facto de ser em inglês é um ponto negativo para eles, apesar de eles falarem inglês, mas não assim tão bem. Mas sim, a minha família concorda que eu sou uma "badass", eles sabem perfeitamente o que têm em casa. Sou temperamental.
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Queria falar um bocadinho dessa ideia: às vezes confunde-se aquilo que é uma pessoa com uma personalidade forte e com abertura para dizer o que pensa com aquela coisa do "ah, é uma pessoa com mau feitio". Sofres disso, de ter mau feitio, quando na verdade podes ser apenas uma pessoa inconformada e progressista. No teu caso, mulher, pode bem surgir aquela coisa do "olha ali a nariz empinado".
Sim, concordo muito com essa ideia. Ainda há dois dias estava a treinar e estava a dizer a um senhor com os seus 50 anos o quão desconfortável é para mim estar a treinar normalmente e ter pessoas que se encostam na minha roda e que não dizem nem bom dia, nem boa tarde. Se a pessoa chegasse ao pé de mim e dissesse "bom dia, importas-te que fique aqui na tua roda". Eu diria: "Sem problema, vou fazer esta volta, por aqui e por ali, tu fazes o que é melhor para ti, mas sem problema". Agora se a pessoa não me diz nada e encosta-se só na minha roda, é estranho. Basta ver isto: estás a andar na rua, na cidade, a fazer as tuas coisas, se tens alguém que se encosta atrás de ti e te segue para todo o lado e não fala contigo, não te perguntou nada… É no mínimo estranho, ou não?
Bastante.
E porque é que na bicicleta isso é normalizado? E eu estava a dizer que quando é assim eu digo: "olhe, desculpe, eu não preciso de companhia para treinar". E ele começou a dizer: "Pois, mas hoje em dia as meninas reclamam". E eu disse: "Pois, mas olhe, eu tenho um namorado, com a minha idade, também é ciclista, e quando responde algo do género ninguém se importa". Ah, claro, ele tem o seu trabalho a fazer, tem as suas séries, entendo, quando sou eu é porque sou arrogante e uma menina mimada. No geral, acho que hoje em dia cada vez menos eu sou interpretada como apenas tendo mala hostia, como dizem os espanhóis. Com o tempo aprendi a comunicar e aprendi a dizer as coisas de forma a ser ouvida. Quando algo nos incomoda e dizemos as coisas com muita agressividade a pessoa do outro lado não vai ouvir, vai querer defender-se, e não vais tirar nada de positivo nisso. Se, depois, me ouvem e não concordam comigo é outra coisa. E também é verdade que em casa tenho mau feitio, acabo por descarregar as coisas menos boas na minha família, mas pronto, eles estão habituados e alguns deles também têm mau feitio, portanto está tudo bem.
Dizes que com o tempo desenvolveste essa ferramenta da comunicação. Relacionas isso com uma ambição de carreira ou é algo que vem contigo desde sempre e é uma necessidade pessoal e de convivência?
Acho que as duas. Desde pequena sempre falei sobre as causas que me faziam sentido e se for preciso falava por outros e por tudo e mais alguma coisa; tentava ao máximo que as coisas fossem o mais justas possível. Ouvi durante muito tempo "choose your battles", não lutes por tudo porque há pessoas que não estão preparadas para lidar com determinado assunto e, se tu estás a falar por elas, não vais tirar nada de positivo. No fundo, metia-me em tudo, levava às costas as batalhas de toda a gente, até que comecei a crescer e a perceber que se quero lutar bem pelas minhas batalhas não posso lutar todas as batalhas. Tenho de escolher os momentos certos para falar, a forma como se dizem as coisas. Eu coloquei aquele Tweet sobre aquilo que aconteceu nos Nacionais…
English post for the international panorama. I won both TT and RR title as an U23, also 2nd elite on both races. You guys know how many interviews the national federation wanted to make? 0
— Beatriz (@beatixpeleila) June 24, 2023
Era um dos temas que queria abordar…
Não foi a primeira vez que aconteceram coisas que me incomodaram da parte da Federação. Eu não vou colocar tudo no Twitter, porque também não faz sentido, mas eu pensei que aí fazia sentido. E não tem que ver com a minha visibilidade no Twitter, porque antes de a ter — eu diria que tenho alguma agora —, eu fazia os mesmos tipos de comentários sobre outras coisas. Mas eu achei que aquele comentário ia chegar às pessoas certas e as pessoas iam sentir-se mal com o sucedido.
Se tiveste lutas desde muito cedo, posso concluir que foste delegada de turma e presidente da associação de estudantes.
[risos] Nunca. Sabes que já várias pessoas me perguntaram isso. Mas como passava pouco tempo na escola não dava. Ao princípio tentei ser, ao quinto/sexto ano, mas também vi o trabalho que eles tinham e eu já dizia "não, não, não".
Ou seja, as pessoas queriam que tu fosses, mas tu não querias.
Exacto, mas tenho toda essa personalidade.
Voltando ao episódio dos nacionais, tu disseste o que sentias, e há uma outra parte, além daquela em que não foste entrevistada depois do título conquistado, é que o hino não tocou na cerimónia de entrega dos prémios.
Nós tínhamos o crono na sexta-feira e a prova de fundo no sábado. Em relação ao contrarrelógio, eram todos os escalões nesse dia e, por norma, o que também achei estranho mas nem disse nada, a foto de família, que é a foto em que toda a gente tem a camisola de campeão, faz-se com toda a gente que ganhou naquele dia. Eu achei estranho porque nesse dia fez-se a foto de família só com as mulheres. E os outros, os paralímpicos, os sub-23, os elites, iam ser depois. Como tal, como não fizemos a foto de família todos juntos, para nós não houve hino. Eu não sei se a seguir [nas provas dos restantes escalões] houve hino, mas para nós não houve, e no dia a seguir, quando tivemos a corrida de fundo, sim houve hino. Mas há pessoas que são campeões nacionais de crono e não são campeões nacionais de estrada, então e não têm direito a ouvir o hino? Eu não sou supernacionalista e entrar naquela do "meu deus, não vamos desrespeitar o hino", mas se há para uns tem de haver para todos.
Claro, é uma questão de justiça.
E eu lembro-me de ser júnior de segundo ano, a primeira vez que fui campeã nacional, e cantar o hino com aquela camisola branca foi algo super emocionante, foi lindo. E eu acho que toda a gente devia ter o direito de fazer isso. Se eles querem fazer fotos de família diferentes, tudo bem, eles é que sabem, agora não podermos fazer aquela foto de joelhos, com as medalhas, etc, não nos foi permitido fazer nada disso porque nos estavam a tirar do palco para entrarem os masculinos e os paralímpicos. E eu acho que isso foi triste. Aí já me ficou um bocado atravessado. E na altura não me fizeram entrevista, fizeram entrevista aos elites masculinos e femininos. E no dia seguinte, depois da prova de estrada, não houve entrevista e o campeão do sub-23 masculino teve entrevista. E foi depois disso que coloquei esse Tweet, na esperança que as pessoas na Federação se apercebessem que eu reparei que não fui entrevistada, no fundo, que chegasse a algum lado. Mas não chegou.
Não?
Não, porque entretanto eu e a Tata [Maria Martins] fizemos o Giro e a Federação, que na minha opinião devia ser a primeira organização a promover o ciclismo e o ciclismo feminino… vocês viram alguma notícia da Federação? Eu não vi nada. Vi n’O Jogo, vi n’A Bola, ou seja, as organizações que há uns anos não trabalhavam o ciclismo, que no fundo começaram a fazê-lo de forma mais consistente depois do João Almeida, deram mais do que uma notícia sobre mim e sobre a Tata e eu não vi nada da Federação. Ok, eu entendo que ninguém faça uma notícia a dizer "o João Almeida ou o Rui Costa terminaram o Giro de Itália" porque isso não é uma notícia. Mas para nós é, nós não tínhamos ninguém numa grande volta desde a Daniela Reis, em 2017, há mais de cinco anos. Na minha cabeça, é uma notícia que devia ter lugar, tinha o seu peso, mas não existe.
E estamos a falar da Federação que devia ser a maior interessada em "vender o seu produto".
Como é óbvio, se tu queres promover uma Volta a Portugal, se queres promover o ciclismo feminino, isto é uma carta que tem algum valor.
A opção de Delmino Pereira em não levar representação feminina aos mundiais de Wollongong, queres comentar? Dá a ideia que o dinheiro e a expectativa de resultados se sobrepõem à igualdade.
Preferia não comentar… bom, deixa-me triste, eu entendo que é difícil gastar muito dinheiro para levar atletas e muitas vezes não ver resultados, mas a verdade é que fechar as atletas em Portugal e não as levar a sítio nenhum também não é a resposta para melhorar o seu nível. Não sei, parece-me que podíamos, pelo menos, ter levado uma ou duas juniores, eu digo sempre que as juniores são o futuro breve; elas não iam lá ganhar, mas iam chegar lá e iam dizer: "Uau. Isto é um nível muito maior do que o meu, tenho de trabalhar muito mais." Eu quando fui a Trento, aos Europeus [em 2021], também tive um choque, foi a primeira corrida que não terminei na vida e foi duro para mim, mas foi algo de que eu precisava, principalmente antes de entrar em sub-23, serviu para me abanar o ego e fazer pensar que por muitas coisas que já tivesse ganho em Portugal, lá fora não era ninguém. Acho que poderia haver um maior esforço por parte da Federação, eu entendo que seja difícil, mas ocupar pelo menos uma das vagas parece-me lógico. Gostava que Wollongong fosse uma excepção, por ser longe e assim, mas a verdade é que quando os mundiais ou os europeus são perto, as coisas não são diferentes.
Isso quer dizer que não vais aos mundiais este ano?
Não sei, a mim ninguém me falou de nada, portanto eu diria que não.
E aos europeus?
Também não sei de nada. Aqui, normalmente, sabe-se duas semanas antes, um mês antes no máximo.
Isso leva-nos à falta de investimento generalizada que em Portugal existe no desporto. Não se está disposto a investir a fundo perdido, basicamente.
Sim, é um modelo baseado nas excepções, é aquele que tu dás pouco e o atleta rende-te muito. Ok, mas isso é uma excepção. E, por exemplo, viu-se o ano passado: foram a imensas provas UCI e fizeram segundo nos mundiais, porque trabalharam antes, não chegaram aos mundiais e esperaram que o António [Morgado] ou que qualquer um deles fizesse milagres. E fizeram provas UCI porque antes já tinham dados bons indicadores. Mas eu, com 15 anos, fui ao Festival Olímpico da Juventude, era cadete de segundo ano, e fiz top-15. Isto não é um bom indicador? Desculpas arranjam-se sempre. Mas sim, não estou a contar ir aos mundiais, espero ir aos Europeus, gostava de ir, mas mesmo que vá, vai ser a única prova em que a seleção vai participar. E acho que temos uma geração tão boa de sub-23: eu, a Dani [Daniela Campos], a Beatriz Roxo, a Mariana Líbano, a Sofia Gomes e estamos a desperdiçar. Honestamente, estar nas equipas onde estamos aqui em Espanha não é um sonho, não é uma equipa World Tour onde tens tudo dado para a mão. É preciso trabalhar muito e, às vezes, tirar dinheiro do nosso bolso, é quase pagar para correr. O escalão de sub-23 é tão complicado, em contextos tão complicados, que me parece que isso devia ter sido tido em conta pela Federação, digo eu.
Ainda ontem o João Almeida, numa entrevista ao PÚBLICO, dizia que correr em Portugal nas camadas jovens só é possível com o apoio das famílias. No fundo, o que estás a dizer é que não é apenas nas camadas jovens.
Exacto, não é só nas camadas jovens. Acho que as pessoas não têm mesmo ideia do tipo de condições que dá uma equipa continental feminina, não têm mesmo ideia e olhem que a minha não é das piores, de maneira nenhuma. E honestamente, cada uma de nós que ainda não desistiu do ciclismo sendo sub-23 de primeiro, segundo ou terceiro ano, ou até elite, merecia aplausos, pode não ter ganho nenhuma corrida, mas merecia aplausos com as coisas que muitas vezes temos de lidar e aguentar. E ainda por cima não estou num sítio de exigir nada, não é, eu não ganho corridas, não posso chegar à minha equipa e exigir isto e aquilo, eu exijo o mínimo possível e isso é difícil. E se nos sub-23 masculinos já existe uma estrutura mundial e colectiva, ainda que pequena, e até para as equipas continentais masculinas, não existe para as femininas.
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Na altura em que entrevistei a Maria Martins, fiz-lhe esta pergunta que agora te coloco. No circuito feminino não existe propriamente um escalão de sub-23. A Rouleur fez um artigo muito interessante em Setembro de 2022 que fala precisamente disso, e de alguns casos de algumas ciclistas que por percorrerem esse deserto entre juniores e elites sentiam uma diferença absurda em termos de ritmo, não conseguindo acabar provas, etc, algumas deixaram o ciclismo por não conseguirem lidar com isso. Como é que vês esta questão?
Há uns tempos houve uma regra colocada pela UCI em que todas as equipas World Tour masculinas tinham de ter ou uma equipa de sub-23 ou uma equipa feminina, a maioria optou pela equipa feminina porque era muito mais barato, mas isso explica porque é que agora temos tantas estruturas femininas no World Tour. Querendo ou não, isso deu um boost enorme ao ciclismo feminino. Agora já todas as equipas World Tour femininas têm um autocarro, e sim, é claro que o autocarro não é o melhor meio de transporte, e depois se tens uma chegada em alto demoras muito tempo a descer e se estás numa equipa que não tem autocarro, mas tens de ir atrás dos autocarros, ainda demoras mais. Cada vez mais existem equipas de desenvolvimento associadas às equipas World Tour femininas, como a Canyon/SRAM Generation, a UAE Development Team, mas ainda há equipas enormes que não têm nada assim: a Trek, a SD Worx. E eu acho que o futuro é criarem-se essas equipas. A partir desse momento, em que tens uma equipa feita para formar atletas, isso é o primeiro passo para começar a organizar corridas de sub-23, que neste momento só há duas no calendário e uma delas é o Tour de l’Avenir que tem a sua primeira edição este ano. Eu não digo que tem de haver um calendário exclusivo de sub-23, 50 corridas por ano, não é isso, mas às vezes é bom tu conseguires comparar-te com outras pessoas do teu escalão. De repente, estou sempre a comparar-me com pessoas que ganham um bom salário, que têm todas as condições do mundo, o seu dinheiro acaba por ser investido em mais ciclismo: nutricionistas, nos treinos, a fazer altitude, etc. Eu, por exemplo, estou a fazer altitude mas é uma prenda dos meus pais. Não é propriamente com o dinheiro que eu faço do ciclismo. Se não tens uma família que te possa apoiar… é muito difícil que consigas sequer chegar a sub-23.
Precisas de ter dinheiro próprio.
É. E pronto, isto é dinheiro dos meus pais. É um investimento deles, na minha opinião muito arriscado.
Mas eles se calhar não estão assim tão preocupados com os resultados.
Isso não, isso não.
Falemos um bocado do Giro, à boleia do que falávamos no que à ausência de um escalão de sub-23 diz respeito. É também por isso que chegas à maior prova por etapas do calendário feminino e percebes que não tens ritmo.
É assim, não foi preciso chegar ao Giro para saber que aquele não era o meu ritmo, eu já sabia antes de ir para lá. Felizmente, estou numa equipa UCI e acabo por fazer corridas nacionais, as Copas de Espanha, que têm um nível incrível neste momento. Se tu sabes que não estás ao nível numa corrida UCI, não vais estar ao nível numa corrida World Tour. O Giro não é uma prova onde as corredoras vão construir forma. Nesse tipo de perspectiva foi diferente, sem dúvida. Eu já sabia que não era o meu nível, de todo, e por isso é que o objectivo era acabar, era aguentar-me o melhor possível e tentar chegar ao fim, que por si já era uma tarefa difícil o suficiente. Foi uma experiência incrível. Era o meu maior sonho desde sempre. Ainda é um bocadinho hardcore pensar que o cumpri aos 19 anos. Ainda estou um bocado de molho nessa ideia.
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"De molho" é bom.
Ainda por cima aconteceu tudo tão rápido. Campeã nacional de contrarrelógio e de fundo numa sexta e sábado e no domingo soube que ia ao Giro, que começava na sexta-feira seguinte. Primeiro, não deu para preparar Giro nenhum. E também não deu muito tempo para eu conseguir colocar as ideias no sítio. Depois saí do Giro, tive menos de uma semana em casa e vim para altitude. E em altitude estou um bocado mais preocupada com a minha concentração de oxigénio no sangue do que com aquilo que me aconteceu. Isso era aliás um defeito que tinha quando era mais jovem: acabava uma corrida e pensava logo na outra e na outra. E não pode ser assim, tens de aproveitar os momentos e desfrutar. Quando tens uma vitória, no dia seguinte tens de saborear. Há dois anos que tenho estado a trabalhar com um psicólogo do desporto e aprendi que o dia da corrida e o dia depois da corrida é para desfrutar, é para cair em mim. A verdade é que desde os nacionais ainda não tive muito tempo para fazer isso.
Pelo que percebi tinhas o contrarrelógio do Giro fisgado. Que tipo de corredora te consideras?
Isso é muito difícil de responder. Em júnior considerava-me trepadora, uma boa trepadora, sprintava bem em grupos restritos e em compensação fazia contrarrelógios muito maus. Eu costumo sempre dizer: quando chegas a sub-23 não fazes nada bem. Ou no caso a elites, não fazes nada bem, esquece. Sprintar há sempre alguém melhor do que tu, subir muitas melhores do que tu, há sempre alguém melhor do que tu. Mas pronto, eu gosto de subir e sinto-me bem, também sou levezinha, o que acaba por permitir que isso aconteça. Honestamente: como júnior era trepadora, como sub-23 ou como elite não sou bem nada, sou alguém que se está a descobrir e a melhorar. Em junior trepadora, em sub-23 a descobrir.
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Quais são as tuas referências na modalidade?
Agora é um bocado diferente, é aquela coisa do "nunca conheças os teus ídolos".
Tiveste alguma má experiência?
Nunca tive assim nada de nenhuma delas ser arrogante ou algo assim, até porque só houve uma pessoa que eu, a meio de uma corrida, nos Pirinéus, estava ao lado dela e eu disse: "Hi, how are you? Props to you, I’m a huge fan". Disse isto à Cecilie Uttrup Ludwig. E ela disse-me: "Oh, well, thanks, maybe you’re next". Foi fofinha. Foi a única pessoa a quem demonstrei publicamente admiração. Sempre gostei muito da Lizzie Deignan e o facto de ela ter sido mãe e voltar para a modalidade, acho que é uma história incrível, super inspiradora. Estando no pelotão é diferente. Uma pessoa pela qual eu não tinha especial admiração, mas que agora vejo de outra forma é a Marianne Vos. É a classe em pessoa, não há palavras. Numa das etapas do Giro eu fiquei para trás um bocado cedo e voltei a reentrar porque elas pararam para fazer xixi e eu agradeci porque me permitiu reentrar. Vinha a sofrer há imensos quilómetros, estava na cauda do pelotão, e a Marianne Vos ia-me a passar pela direita e eu quase a mandei ao chão e eu fiquei: "Ai Beatriz, vão-te matar". Toda a gente adora a Vos, ela é a rainha por algum motivo. As colegas de equipa olharam para mim com uns olhos… Iam-me matar. E eu só pedi desculpa e ela super calma, olhou para mim e disse "ah não faz mal". Que classe de mulher. Subiu imenso na minha consideração. É assim pacata, está no seu sítio. Mas há algumas que são pesadas e chatas, estão sempre a tocar, sempre a desviar. Não vou partilhar quem, até porque a maior parte delas não é assim tão boa, não dava para ser capa de revista ao estilo: "Beatriz Pereira diz que não sei quem é chata".
Epá, pois, isso de facto seria um problema uma vez que o falso plano é um projecto com um impacto internacional elevadíssimo e, portanto, terias problemas. É verdade que eras a DJ de serviço da Bizkaia-Durango no Giro? O que é que tocava?
Quando estou aqui em Espanha acabo por ouvir muito reggaeton, por culpa delas. E é vibe, não é? Antes de uma prova, para te subir o pulso.
É consensual que o reggaeton já deu a volta. Era mau no tempo do Daddy Yankee e agora é óptimo.
Normalmente, sozinha, é difícil ouvir reggaeton. A não ser que seja Rosalía, e que não é bem reggaeton. A minha go-to para sempre: é a Beyoncé. Sou muito fã. Um bom "Crazy in Love" para te dar essa confiança antes das corridas, mesmo que seja destruído três minutos depois. [risos]
Pelo que percebi, fizeste ballet quando eras criança. Podíamos estar agora na presença de uma bailarina da Companhia Nacional de Bailado se não fosse o ciclismo?
Era um dos meus objetivos. Eu comecei a dança aos cinco, na altura era mais assim danças urbanas, rapidamente a professora incentivou-me a ir para o ballet porque percebeu que eu tinha jeito. Lembro-me de ter oito anos e de fazer três horas de ballet por semana e o ballet também não é bem um desporto barato — eu sempre tive o dedo podre. Mas sim, fiz ballet durante muitos anos e isso ensinou-me muitas coisas, ajudou-me muito no meu foco, na minha disciplina, ensinou-me que muitas vezes um grande resultado está por detrás de um pequenino detalhe. Quando comecei a fazer ciclismo julgo que um ano depois deixei o ballet, sobretudo porque nunca fui uma grande descedora, na altura fazia mountain bike, e andava muito com a bicicleta à mão. Isso estragava-me muito os meus lindos tornozelos, andava sempre com os tornozelos inflamados. Então voltei para as danças urbanas, para fazer uma especialidade que é o popping. Ainda fiz dois ou três anos disso.
Tu és pro em popping, é isso?
Epá, não, mas ia ser.
É que isso era muito bom: Beatriz Pereira profissional em popping.
Tenho algumas bases, popping, breakdance… Mas pronto, entretanto o ciclismo meteu-se na minha vida, quer dizer, eu é que o meti na minha vida, contra a vontade dos meus pais e as coisas foram crescendo. Mas antes sim, lembro-me de ter oito anos e que o meu grande objectivo era ganhar uma bolsa e ir para uma grande cidade estudar ballet clássico.
Assim, Viena ou algo assim.
Era isso. E lembro-me de dizer à minha mãe que aos 18 anos ia sair de casa, ia-me embora, ia ser uma mulher independente. Entretanto, as coisas mudaram um bocadinho. A verdade é que passo muito tempo fora de casa, então estou sempre mortinha para chegar a casa. Portanto, sair de casa… já estou a caminho dos 20 e sair de casa não está assim propriamente planeado para breve, mudei bastante os meus objectivos de vida.
Tu estás na Bizkaia-Durango, antes disso estiveste no Bairrada e antes disso tiveste…?
No Centro Recreio Camiliano, que é uma equipa da minha freguesia, porque eu sou de São Miguel de Seide, que é a terra do Camilo Castelo Branco, que acabou por dar o nome à equipa.
Não fazia ideia que o Camilo Castelo Branco tinha dado o nome a uma equipa de ciclismo. Isso é espantoso.
Mais ou menos. É que ali é tudo camiliano. O senhor nem é de lá, não está lá enterrado, viveu lá poucos anos, mas ali tudo é camiliano, apropriámo-nos completamente do nome do senhor.
E a transição para o Bairrada é já em juniores?
É em cadetes.
Como é que se deu a possibilidade de ires para Espanha? Foi uma coisa tão simples como: "Olha, queres vir para aqui?"
Mais ou menos. É assim, quando era júnior de segundo ano tinha algumas equipas espanholas interessadas em mim, porque na altura fazíamos muitas corridas em Espanha pela selecção. E lembro-me de fazer a primeira Taça das Nações femininas — a primeira participação portuguesa foi connosco, com a minha geração — que foi em Bizkaia, na altura já o meu treinador conhecia a directora da Bizkaia. Nessa corrida ela veio falar comigo, apresentou-se e tal, a corrida acabou por não me correr muito bem, mas no final do ano acabou por vir uma proposta e eu juntei-me à Bizkaia porque é uma equipa que tem um senhor calendário, tem imensas provas UCI e World Tour e era isso que eu queria, não tinha tanto que ver com aquilo que me podiam dar, mas era ter condições para fazer corridas, evoluir e alguém de uma equipa World Tour olhar para mim. Dois anos depois as expectativas alinharam-se um bocadinho, mas sim, o objectivo ainda é esse. Se tu andas muito bem em Portugal, óptimo, mas não está ninguém lá para te ver e contratar. Nas corridas que a Bizkaia faz é um bocadinho diferente. É óbvio que para eu ter o nível para alguém olhar para mim já são outras histórias, mas a escolha foi por aí.
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Tens contrato com a Bizkaia até quando?
Até ao final do ano.
E que tal? Já há novidades sobre o futuro?
Nada, eu ainda não sei nada.
Ou seja, é o costume: duas semanas antes ligam-te para fazeres os mundiais ou para renovares contrato.
É a vida de ciclista.
Mas se existisse a possibilidade de continuares na Bizkaia era algo que vias com bons olhos?
Não posso falar sobre isso.
Chegámos a esta fase da entrevista. Muito bem.
Não sei mesmo, até porque pronto para o ano vai entrar em vigor uma legislação que vai obrigar todas as equipas continentais espanholas a pagar o salário mínimo a todas as atletas e o que acontece é que muitas equipas continentais espanholas poderão encerrar. Portanto, o futuro ainda está um bocadinho incerto…
Sabemos que és uma fantasista acérrima, tal como nós aqui no falso plano, nomeadamente no Velogames. Como é que foi poderes escolher-te para o Giro? E já agora: sabendo que muita gente te escolheu, isso trouxe mais pressão?
Eu vou ser mesmo honesta. Tenho uma liga no Velogames com a minha família e com a família do meu namorado e todos me iam escolher e se eu não me escolhesse eu estaria em vantagem [risos]. Eu senti-me muito mal e tive de me pôr, zero estratégia. Também tínhamos uma liga na Bizkaia. E o Velogames dá pontos se fores para a fuga do dia, nós [Bizkaia-Durango] entrámos em duas fugas, uma com a Irene [Loizate] e ela deu-me um ponto, mas no dia seguinte a Sofia [Rodríguez] também entrou na fuga do dia, mas não foi considerada fuga do dia porque foi logo no princípio. Ou seja, tanto esforço, e depois não foi considerada fuga. Algumas delas tinham-me na equipa e estavam naquela do "Bia, anda lá, tens de entrar na fuga, tens de me dar pontos, estás com zero". Tivemos todas zero, menos a Irene.
O falso plano inclusive fez uma equipa com nove Beatriz Pereira.
Teve zero pontos. Eu desde cedo avisei: eu sei que sou barata, quatro pontos, mas não me ponham no vosso Velogames, há atletas de 4 pontos que dão mais garantias. Mas pronto, foi giro, levo anos a apostar no Velogames e o meu nome estar ali foi estranho. Mas como eu disse: ainda não está tudo assimilado desse Giro na minha cabeça.
E tens todo o direito. Olha, Beatriz, vai lá treinar antes que fiquem 30 graus a 2300 metros de altitude. Muito obrigado pelo tempo e disponibilidade, o prazer foi todo nosso. Um grande abraço.
Ok, obrigada eu. Abraço.
[Esta entrevista foi feita no dia 18 de Julho de 2023, enquanto Beatriz Pereira estava em estágio de altitude em Espanha]