Arnaud de Lie, o sprinter agricultor

Chegou à sua primeira vitória profissional com 19 anos e até ao momento amealhou mais 7 na sua estreia no escalão de elites.

Arnaud de Lie, o sprinter agricultor
Vitória de Arnaud de Lie (Lotto Soudal) na 3ª etapa da Volta à Valónia (foto: SAPO Desporto)

Os pais têm uma quinta que produz leite, paisagem que desde cedo foi a sua. Ainda assim, é preciso dizer, o jovem belga da Lotto-Saudal cheira a tudo menos a leitinho. Chegou à sua primeira vitória profissional com 19 anos e até ao momento amealhou mais 7 na sua estreia no escalão de elites. É um caso sério.

Aos 19 anos, Mark Cavendish tinha zero vitórias profissionais. André Greipel e Marcel Kittel idem. O primeiro só aos 21 — sensivelmente um mês antes de cumprir os 22 — alcançou tal feito na clássica Scheldeprijs, no seu primeiro ano a andar com os melhores, ao serviço T-Mobile Team. O “Gorila” Greipel só aos 23, na Volta a Dinamarca, se estrearia a vencer, ainda ao serviço da modesta Team Wiesenhof, corria o ano de 2005 — em 2006 e 2007, já na T-Mobile Team vence duas etapas por ano e só em 2008, quando se muda para a Team Columbia aumenta drasticamente o seu rácio de vitórias, aí já com 25 anos. Quanto a Marcel Kittel, foi aos 22 anos que chegou à então Skil – Shimano, vencendo de imediato, em Janeiro, no Tour de Langkawi — somando um total de 17 vitórias no seu primeiro ano ao mais alto nível, com inclusive uma vitória na Volta a Espanha, batendo nesse sprint lendas como Peter Sagan, Óscar Freire e Alessandro Petacchi.

Relativamente mais cedo do que qualquer um destes, aos 19 anos, ainda o mundo do ciclismo se espreguiçava em jeito de boas-vindas à temporada de 2022, já Arnaud De Lie fazia cair uns quantos queixos. É aquela altura do ano, fim de Janeiro, em que por cinco dias Maiorca é o centro do universo. O jovem sprinter belga da Lotto-Soudal alcançou a sua primeira vitória profissional no Trofeo Playa de Palma superando nomes como Juan Sebastián Molano, Hugo Hofstetter, Michael Matthews, Giacomo Nizzolo, Alexander Kristoff, entre outros.

Volvido um mês e pouco, no GP Jean-Pierre Monseré, na Bélgica, o sobredotado De Lie amealhou mais um triunfo em elites perante uma concorrência menos exigente mas ainda assim de relevo onde se incluíam nomes como Dries De Bondt, Hofstetter, Gerben Thijssen ou Ethan Vernon. Entretanto, o Sol continuou vivo, estamos em Agosto, e De Lie, já com 20 anos, tem 7 vitórias profissionais — o segundo ciclista mais novo no activo a chegar a tal número, apenas atrás de Remco Evenepoel. No caminho para o lugar mais alto do pódio venceu, em momentos distintos, gente como Mark Cavendish, Tim Merlier, Danny Van Poppel, Sam Bennett, Fernando Gaviria, etc. Além disso, em 2022, é o ciclista com mais top-10 em corridas de um dia — fê-lo por 17 vezes.

Arnaud de lie (Lotto Soudal) leva a vitória em Grote Prijs Jean-Pierre Monseré 2022 (foto: Cycling News | Getty Images Sport)

Filho de pais agricultores — ordenhar vacas e ajudar o pai na quinta está-lhe no sangue — e do mountain bike, o precoce corredor cedo mostrou os dentes afiados. Enquanto júnior, em 2019, foi campeão belga de estrada e em 2021 somou vitórias no Tour Alsace, no Circuito das Ardenas e fez dois top10 no Tour de l’Avenir — todas importantes provas no escalão de sub-23. Os indicadores estavam lá, certo, mas isto tudo?

Comparemo-lo, por exemplo, com o Marijn van den Berg, sprinter neerlandês da EF Education-Easy Post que em 2021 venceu duas etapas em Avenir conquistando a classificação da regularidade. Berg tem 23 anos, mais andamento em provas de sub-23, e em 2022 o seu melhor resultado é um sexto lugar na última etapa da Volta a Polónia. À exceção disso tem apenas mais quatro top10, o que é significativamente pouco — também podemos pensar em nomes como Mick Van Dijke, Luca Colnaghi, Matthews Walls. Ou seja, por um lado sabemos que o step up para o principal escalão do ciclismo é um degrau cada vez mais curto, há cada vez mais corredores a chegar, ver e vencer — pensemos em exemplos como Biniam Girmay ou Olav Kooij no sprint (este último com 9 vitórias em 2022, 20 anos de idade), ou até como Tadej Pogačar, João Almeida, Carlitos Rodríguez e Juan Ayuso no que à classificação geral diz respeito —, por outro sabemos que miúdos como Arnaud De Lie, com o seu pêlo na venta, capacidade de posicionamento e velocidade de ponta, têm de ser tidos em conta, sobretudo se olharmos para tantos outros jovens para quem o acesso aos primeiros lugares em provas de elites parece uma espécie de Mur de Huy.

O seu contributo para a tentativa de manutenção da Lotto-Soudal no World Tour é, de longe, preponderante — quer a equipa belga consiga ou não resgatar a licença; tem na Movistar e na EF Education-Easy Post as suas grandes rivais. Não deixa de ser curioso que uma equipa com a história da Lotto dependa, em grande medida, de um rapaz de 20 anos para se manter entre os melhores — ainda estás por aí, Caleb Ewan?

Arnaud de Lie (Lotto-Soudal), ainda na equipa sub 23 da Lotto-Soudal U23, conquistou 10 vitórias em 2021 (foto: Lotto Soudal)

De Lie, cujo grande ídolo é Philippe Gilbert — venceu a prova La Phillippe Gilbert Juniors em 2020 —, teve o privilégio de correr, receber conselhos, ser escudado pelo quarentão que este ano termina a carreira. Quem tem acesso aos melhores, só pode tornar-se melhor. E se é bastante cedo para afirmar que o belga vai ser um dos próximos grandes sprinters da década — faltam provas ao mais alto nível, com um pelotão repleto dos melhores sprinters do mundo, estradas largas e de preferência em grandes voltas —, não será, certamente, exagerado dizer que este é um dos mais prometedores velocistas que o ciclismo mundial viu nascer recentemente. Medo é coisa que não parece pertencer a Arnaud De Lie, provavelmente influenciado pela convivência com o gado e pelo cheiro a terra pisada.

Para já pode continuar a afastar a ideia de baldio da sua breve carreira. Tem como objectivo ser campeão mundial de sub-23 no final de Setembro, na Austrália, e dedicar o título ao seu ídolo só lhe ficaria bem. No entretanto, há uma porrada de clássicas belgas e francesas para vencer até aterrar em Wollongong. E são para vencer. A Lotto agradece. Gilbert também. Ewan talvez nem tanto.