António Morgado: "Não me custa nada abdicar da vida de adolescente, o que me faz sofrer é ficar para trás nas corridas."

Um jovem completamente apaixonado por ciclismo, pela competição, pelo treino e, sobretudo, por ganhar.

António Morgado: "Não me custa nada abdicar da vida de adolescente, o que me faz sofrer é ficar para trás nas corridas."
António Morgado

António Morgado é sinónimo de sonhar alto para os portugueses que nele depositam grandes esperanças para os próximos anos e aproveitámos esta oportunidade para falarmos um pouco com ele sobre isso. Como chegou até à posição onde se encontra, quais são os objetivos no imediato e quais são os limites para o que pode alcançar, se é que os há. Encontrámos um Morgado tranquilo e confiante no futuro apesar de uns últimos meses difíceis, focado nos Mundiais e no Tour de Avenir, onde espera regressar às grandes exibições. Já ultrapassou a desilusão dos mundiais do ano passado [foi segundo num sprint a dois] porque o caminho é para a frente e não acredita que lhe falte muito para lutar com os melhores dos melhores nos sub-23 porque o objetivo é sempre ser o melhor.

Em suma, um jovem completamente apaixonado por ciclismo, pela competição, pelo treino e, sobretudo, por ganhar, que promete fazer tudo para nos deixar muitos e bons anos agarrados ao ecrã a festejar as suas vitórias.

António Morgado, atualmente na Hagens Berman Axeon.

Henrique Augusto (HA): Antes de mais, nós no falso plano costumamos tratar-te por Morgadão, o que não me parece adequado para a entrevista. Preferes António ou Morgado?
Pode ser Morgado, é tranquilo.

HA: Estamos a falar na altura do Tour, num dia chocante em que Pogačar perdeu quase 6 minutos para Vingegaard depois de já ter levado uma tareia no ITT de ontem. Acompanhas o Tour? E se sim, torces por alguém?
Epá, eu torço sempre, não é bem pelos mais fracos, mas por quem não está tão bem. Gosto de todos os ciclistas, mas estava a apoiar um pouco mais o Pogačar, mas pronto, o Vingegaard está superior.

HA: Então estás desiludido hoje?
Não, sei que o Vingegaard está noutro nível neste Tour, é apreciar a arte dele.

HA: Então e quando estás a ver a corrida passa-te pela cabeça que daqui a uns tempos podes estar a competir com esta malta?
Ali naquele alto nível, aquele nível que eles vão, acho que não. Um dia espero conseguir chegar lá, mas ainda faltam uns anos. Pelo menos uns três anos.

HA: Três anos, já temos o objetivo traçado. Já estás a deixar-nos com as expectativas em alta. Em 2026 estás na roda do Pogačar, está apontado. Sem pressão, sem pressão. [risos]
Não, não. [risos]

HA: Então e és daqueles atletas que acompanha muito o desporto que pratica ou gostas mesmo é de andar de bicicleta? Dia de montanha no Tour ou dia de Roubaix é dia de sofá reservado?
Sim sim, eu gosto de ver ciclismo, sempre gostei. Quando são grandes etapas ou monumentos costumo sair um pouco mais cedo para treinar de modo a chegar a tempo de ver o final da prova. Eu adoro ver ciclismo.

HA: Fazer horários em função de ciclismo, compreendo perfeitamente. Percebendo que acompanhas bastante ciclismo, quais são as tuas principais referências?
João Almeida, Roglič e Wout van Aert.

HA: Tens relação com o João?
Sim sim, ele é daqui da minha zona e às vezes treino um pouco com ele.

Ricardo Pereira (RP): Ele também anda sempre no iô-iô contigo..?
O João é muito forte. Demasiado forte para mim.

HA: Agora vamos ao clichê. Já percebemos que gostas de ver ciclismo, assumo que gostes de praticar também, de onde vem essa paixão toda pelo ciclismo?
O meu pai andava muito de bicicleta, eu comecei novo a andar também e gostei logo. No fundo foi isso. Nunca tive ideia de ser outra coisa.

HA: Nós somos malucos por isto e foi na Bairrada que demos por ti. Como foi o teu percurso até chegares lá?
Foi um percurso normal, acho eu. Sempre gostei de ganhar, ou pelo menos tentar ganhar, e de discutir corridas. Antes tinha estado no Alenquer, onde fiz dois anos bons, e ainda antes disso na EcoSprint, que foi a minha primeira equipa de formação.

HA: Quando te foste inscrever foi por iniciativa tua ou alguém lá na terra reparou que andavas sempre de bicicleta e convidou-te?
Já nem sei bem, mas tenho ideia que foi o meu pai que me levou a uma corrida aqui na zona onde me saí bem e gostei, depois inserir-me numa equipa foi o passo seguinte natural.

RP: Mas foi logo uma corrida de estrada?
Não, não, comecei no BTT. Só me mudei para a estrada já aos 14 anos.

RP: Vamos falar um bocado mais sobre o teu percurso em juniores, onde dominaste o circuito ibérico a teu belo prazer. Lá fora os outros já davam alguma luta, não ganhavas todas todas, qual é a razão para essa diferença? O pelotão ibérico tem menos qualidade?
No primeiro ano ainda estava a testar-me, queria ver como me saía em corridas internacionais e assim. No ano passado já tinha o objetivo de ser o melhor e trabalhei para isso. Acho que lá fora havia uma diferença grande de material e em termos de recuperação, e isso fazia muita diferença, mas nunca liguei muito a isso, sempre tentei lutar pelo melhor lugar possível.

RP: Vou destacar aqui alguns resultados que obtiveste ao longo do ano passado. O segundo lugar na Corrida da Paz, a vitória na competição italiana do Giro della Lunigiana e o segundo lugar nos mundiais, claro. Alguma destas corridas te deu aquela sensação de "este é o meu tipo de percurso, o tipo de corrida que quero ganhar no futuro"? Ou tens mais o registo de "é só mais uma, ganhar tudo e mais alguma coisa"?
Talvez no futuro me queira tornar num ciclista que sobe melhor. Também ainda não tive um verdadeiro teste, agora nestas últimas corridas tinham montanha a sério mas estava um pouco condicionado e nunca tive o real teste de como é que eu estou quando me sinto bem. Mas sim, talvez, o meu género diria que assentará em subir bem. Corridas por etapas é onde mais me imagino.

RP: Não te vou perguntar qual a derrota que te está mais entalada, porque imagino que sejam os mundiais. Conta-se por aí que o Herzog te perguntou durante a corrida se podia ganhar. O que lhe respondeste?
Eu e ele somos amigos e aquilo foram circunstâncias de corrida, só que a câmara captou o momento, mas foi tudo num clima bom.

O pódio da prova de fundo de juniores dos últimos mundiais.

RP: Pois agora são da mesma equipa. Conta-nos um pouco mais sobre essa experiência dos mundiais. Provavelmente foi a primeira vez que tiveste assim num ambiente com todo o pelotão internacional de topo, alguma coisa que tenhas retido particularmente da experiência?
Eu já tinha corrido com todos os ciclistas de topo do meu escalão. Sabia que a corrida ia ser muito dura e o objetivo passava por fazer um top-10, tentar entrar em fugas e tentar dar algum "show", mas com o desenrolar da corrida fui-me sentindo muito bem, algo de que não estava à espera, porque tinha passado mal a noite, sem dormir nada, mesmo uma noite quase em branco, mas depois fui para a corrida, arranquei e na primeira subida percebi logo que estava bem, as pernas estavam lá, o espírito para sofrer estava lá e depois pronto, correu bem a corrida e consegui fazer segundo, algo que não tinha imaginado.

RP: Não me digas que também te foram bater à porta como ao MvdP?
Não não [risos]. Foi mesmo nervosismo.

RP: Eu referia-me também a toda envolvente, estavam lá também os sub-23, os elites. Tens alguma coisa a destacar dessa experiência de estar num ambiente com todos os grandes ciclistas mundiais ou nem chegaste a ter contato?
Sim, é incrível. Podemos estar sentados à mesa com atletas de nível mundial, como o Nelson Oliveira, o João Almeida, os irmãos Oliveira e é sempre incrível poder falar com ciclistas que estão ao mais alto nível. Claro que também é óptimo podermos estar a treinar e vermos estrelas como o MvdP, o WvA, etc.

HA: Falaste aí de "dar show". Isso é uma coisa que tens em conta e que tu procuras enquanto ciclista?
Não propriamente. O primeiro objetivo é sempre estarmos bem e darmos o melhor. Se estivermos bem o objetivo é ganhar. Se conseguires ganhar e "dar show" tanto melhor, mas o mais importante é ganhar. Se não fizeres nada a corrida toda mas no fim ganhares está tudo óptimo.

HA: Então e como é esse evoluir das sensações? Tu dizes que dormiste pouco, sentiste que o dia ia ser mau mas depois na primeira subida do dia já achavas que ia ser bom. Como é que é esse processo?
Às vezes arrancas para uma corrida e sabes logo que aquele não vai ser o teu dia. Assim que o carro sai da frente tu ficas logo "uiii". Nesta prova, nas primeiras subidas, nos primeiros ataques que eu respondi, senti-me bem, parecia que não estava cansado e a partir daí sabes que vai correr bem.

HA: Então e esse tipo de decisões, ir na fuga ou não, quando atacar, são coisas que fazes por instinto? Tentas seguir algum corredor em específico?
Claro que temos alguns corredores que sabes que não podem sair, que são muito fortes, que se rodarem sozinhos vai ser difícil apanhá-los. Mas nunca marcas só um corredor, marcas os movimentos. Sabes que se forem dois, mesmo que não sejam tão fortes, pode ser complicado, e às vezes não ganha o mais forte, ganha o que leu melhor a corrida. Mas voltando aos mundiais: o meu objetivo era entrar em fugas e tentar ir para a frente.

RP: Nestes escalões, o teu conhecimento dos restantes ciclistas é meramente experiência de correr com eles ou tens algum tipo de análise pré-corrida de acordo com as características de cada um?
Quando se começa a corrida, sabe-se sempre cinco ou seis nomes que são os favoritos para ganhar. Pode, no meio da corrida, aparecer pessoal novo, muito forte, que nunca corremos contra ou que se corremos não estavam em boa forma e não sabemos muito  sobre a maneira como eles correm, quais são os seus pontos fracos e assim. Mas os favoritos, o "pessoal famoso" nós já sabemos bem quais são os pontos fortes e fracos.

HA: Passamos agora para a época atual. Tem sido aqui um desafio para ti, primeira época sub-23, sais de uma estrutura nacional para uma das maiores equipas de desenvolvimento do mundo, imagino que mais tempo fora de casa… Como tem sido?
Um processo fácil. A equipa é muito compreensiva, muitos atletas da minha idade, e temos tido bons resultados o ano todo enquanto equipa, acho que estamos num excelente nível este ano. Temos estado sempre na frente em todas as corridas sub-23, ou ganhando ou fazendo pódio.

RP: E como é entrar numa equipa que tem a fama da Axeon, de lançar muitos corredores para o WT. Como é olhar e ver "realmente eles vêem-me como um corredor com este potencial todo e que pode dar cartas no futuro"?
É uma equipa incrível, dá oportunidades a todos e sabe o que tem de fazer com um corredor para o lançar. Não sei bem porque nunca tive em outra, mas acho que é uma estrutura incrível.

HA: A questão da liderança, já vem tudo decidido do carro ou é mais algo que se vai desenhando durante a prova?
É mais algo que vai acontecendo com a corrida. Todos temos liberdade e oportunidades. Não é por falta de oportunidade.

António Morgado conquistou o Tour de Rhodes em Março.

HA: Apesar disto, a tua época começou de forma muito boa, ao ganhares o Tour de Rhodes.. Achas que foi um marcar de posição dentro da equipa e contra uma competição mais a sério?
Iniciei o ano com muito boas sensações, a primeira parte da época toda. Tinha dois grandes objetivos nessa fase, que era ganhar o Tour de Rhodes, uma corrida de elites com atletas incríveis, pelo que era complicado, e também a Liège-Bastogne-Liège. Consegui cumprir o primeiro objetivo, estava super satisfeito e motivado. Depois fui correr uma prova com equipas WT, a Volta ao Limburgo, muito boas sensações, estava no grupo da frente mas tive uma avaria mecânica que me tirou da discussão da corrida. Da discussão não sei porque não iria ganhar, mas da discussão de um top-5 ou de um pódio.

RP: Mesmo assim foste o melhor jovem da corrida.
Sim, mas nesse dia eu acho que podia ter feito uma coisa muito bonita e importante. Estava no grupo da frente, bem colocado, boas pernas. Mas depois tive o problema, muito tempo para mudar de bicicleta. É o ciclismo, são as corridas, faz parte. Depois veio o circuito das Ardenas, onde também me senti super bem, super motivado, não consegui discutir a corrida para ganhar porque houve um dia que chegou uma fuga com algum avanço e eram ciclistas muito bons, já "velhos". "Velhos" vá, 27 anos e assim. Depois tive a lesão no joelho, que me obrigou a parar um mês e meio, sem competir e sem treinar. Quando voltei fiz uma taça do mundo pela seleção, onde voltei a sentir-me muito bem e foi uma pena porque voltei a ter problemas mecânicos numa altura crucial, se não podia ter discutido o pódio e quem sabe mais…

RP: Ainda limpaste uma etapa…
Sim sim, ainda deu para ganhar uma etapa. Eu "parti" a época em três. A primeira era esta de que falámos, até à Liége. A segunda era agora o Giro e o Giro d’Aosta e as sensações nesta fase já não foram boas, estive sempre com problemas estomacais, não conseguia comer, durante as corridas perdi muito peso porque não conseguia ingerir o que estava a gastar. Estas duas corridas, e juntando o nacional, foram uma desilusão grande comigo mesmo porque não tenho encontrado as sensações corretas.

RP: Quais eram os teus objetivos no início da época para estas provas? Para o Giro por exemplo? Era lutar pela GC, ganhar etapas?
Tinha o objetivo de fazer top-10 no Giro, top-10 no Giro d’Aosta que tinha uma competição mais acessível e top-10 em Avenir. Eram os meus objetivos para esta segunda fase da época. E pronto, cheguei ao Giro e fiquei logo super condicionado. Nos três primeiros dias estava normal, estava-me a sentir bem e pensei "bem isto é uma corrida que eu posso vir a discutir". Quando cheguei ao dia do Stelvio, ainda antes de arrancar, tive que vomitar e tudo e a partir daí foi sempre a descer. Os nacionais foram logo na semana a seguir, não tive tempo de recuperar, continuava completamente devastado, e agora esta outra corrida em Itália continuava a não me sentir bem. Mas pronto, agora estou a melhorar, vamos ver como vai ser a terceira fase da época.

HA: Voltando ainda ao Giro, tu até por não estares nas melhores condições, acabaste por ter de trabalhar para outros colegas, que é uma posição a que não estás tão habituado. Como te sentes nesse papel?
Sinto-me bem, sei que se fosse ao contrário eles também o fariam por mim. Claro que gostava de, em termos individuais, estar a discutir a vitória. Mas não estando, só tenho é que trabalhar.

RP: Vês-te a fazer um trabalho semelhante ao do WvA, por exemplo? Ser um líder na maior parte da época e chegar ao Tour e ser um gregário?
Arghhh, não sei. Vejo-me a fazer isso, mas não é o que eu quero. Gosto de liderar e de sofrer até ao fim. Eu gosto muito de trabalhar mas gosto mais de ir até ao fim e de discutir, dá mais pica.

HA: Já passámos pelo Giro e apesar de não te trazer as melhores memórias, queria voltar ao assunto. Já sabíamos que não estavas a 100%, mas ouvindo de ti ficamos mais descansados, que estamos habituados a ver-te sempre na frente e ficámos preocupados. Ainda assim retiras coisas positivas da experiência de correr uma corrida destas, subir o Stelvio, etc?
A experiência foi só mesmo acabar a corrida, que aquilo foi cá um sofrimento só para acabar… a corrida era dura mas não era um ritmo ao qual não estejamos habituados, não foi uma coisa absurda. É um ritmo normal, eu é que não estava bem. Eu sei os números que os atletas da frente estavam a fazer e eu sei que consigo fazer aqueles números.

HA: Então e no Stelvio resististe à tentação de ir à boleia, como muitos dos teus colegas? Nós não dizemos a ninguém, eu no teu lugar faria o mesmo, aquilo é muito duro…
Eu prefiro chegar fora de tempo do que fazer a subida assim. Claro que se for ali um bocado de ajuda, a entregar longamente um bidon é OK, isso toda a gente faz, até o Vingegaard faz. Mas epá eles fizeram os 20 e tal quilómetros agarrados.

HA: Tu não só não chegaste fora de tempo como ainda chegaste de cavalinho. Se não dá para ganhar, temos que "dar show".
Eu arranquei para a subida, tive que parar para pronto… [risos] E na parte final um rapaz da Suíça desafiou-me para acabarmos os dois em cavalinho e eu aceitei, vamos lá cortar a meta em cavalinho.

António Morgado a cruzar a linha de meta no Stelvio. (foto: Mario Zannoni)

RP: Vamos então passar ao Avenir. Já disseste que estás a apontar ao top-10, esse objetivo mantém-se?
Sim, claro, vou tentar lutar pelo top-10 do Avenir. É o objetivo de toda a gente, é o ponto alto de sub-23, é aquela corrida em que toda a gente vai para dar tudo. Sei que Portugal vai levar uma equipa muito forte, com vários atletas que sobem muito bem. Vai haver pessoal melhor preparado do que eu, com estágios de altitude e assim, que eu não vou fazer nenhum para o Avenir. Mas não é desculpa, vamos lá ver como é que vai correr.

RP: Achas que a concorrência existente, mesmo para lutar pelo top-10, é muito forte? Ciclistas que já estão neste escalão há uns anos, alguns que já trabalham com equipas WT regularmente. Achas que o nível de sub-23 este ano está muito elevado?
Epá, sinceramente, claro que vai parecer um pouco arrogante dizer isto, mas eu acho que não. Há três ou quatro corredores muito fortes em classificações gerais. Depois há um grupo de 20 atletas que estão todos mais ou menos no mesmo patamar e pronto, é uma luta entre esse pessoal para conseguir, mas é uma luta em que posso entrar. E mesmo para Portugal, temos mais dois ou três corredores que podem fazer top-10, que correm em Portugal, têm 21 anos, estão no último ano, estão a trabalhar bem e também conseguem lutar por esse objetivo.

RP: Sentiste no Giro que havia algum atleta tipo o Cian, que dominou o ano passado, que se destacasse muito de todos os outros?
Não. Quem ganhou foi aquele atleta da Jumbo [Staune-Mittet] mas eu acho que é, sem querer tirar mérito, porque ele também faz duas corridas por ano, o Giro e o Avenir, para as quais consegue ir sempre muito bem preparado. Claro que faz mais corridas, mas para ganhar só faz estas. Faz três semanas de altitude para o Giro, descansa, faz três semanas de altitude para o Avenir e ainda tem um grande acompanhamento por parte de uma estrutura como a Jumbo. Mas ele não ganha com quatro minutos, nem ganha as etapas todas.

HA: Há pouco referiste a questão dos números em relação ao Giro. Como é a tua relação com esse lado quase matemático do ciclismo?
A correr não me foco muito nos números, é sofrer até aguentar na roda e atacar até conseguir. Mas a treinar gosto de ver os meus números e gosto que sejam bons.

HA: Dirias então que em corrida isso ainda não tem muito impacto nas tuas decisões?
Claro que se for uma subida longa, não podes ir a um ritmo estúpido. Se sabes que aquele é o teu limiar para que é que vais a mais? Podes aguentar mais três ou quatro minutos naquele ritmo mas sabes que depois vais rebentar, e aí mais vale meteres o teu ritmo e no fim logo fazemos as contas.

HA: É um tema que agora está na moda. Ainda ontem no ITT vimos Vingegaard dizer que olhou para o powermeter e que achava que estava avariado tais eram os números. Ou seja, às vezes os ciclistas conseguem dar ainda mais do que acham que têm...
Sim mas isso, como ele ia ontem, esquece. Como ele ia ontem vale tudo.

RP: Antes do Avenir ainda temos os mundiais. Achas que a desforra é já este ano ou a concorrência é muito forte e a forma ainda não é a ideal?
Vamos ver como é que eu vou chegar, mas se tiver numa forma normal, basta estar normal, posso lutar mas acho que vai ser uma corrida muito disputada, muito dura. É uma prova que não tem muita altimetria mas tem muita curva e certamente a corrida vai partir é nas curvas. Tem 60 curvas no circuito final, vai ser duro porque vais ter de estar sempre bem colocado, se não tens de estar sempre a sprintar na saída das curvas.

RP: E tem uma série de subidas curtas, achas que é nesse perfil que te podes adaptar melhor neste momento?
Vamos lá ver. Se o terreno for sempre acidentado vai ser mesmo muito duro, vai chegar um grupo de 15/20. Mas isto depende do dia, depende da inspiração.

RP: O que eu queria perguntar é se, neste momento, é neste tipo de terreno como o Circuito das Ardenas e a Volta ao Limburgo em que te sentes mais confortável? Mais do que no Stelvio?
Eu acho que se tiver em forma igual em todas, acho que até me posso dar melhor em subidas longas. Mas não sei, porque lá está, em prova ainda não consegui fazer um real teste.

RP: Saltando agora para o futuro. Qual era a prova de WT em que mais sonhas sair-te bem?
Talvez o Giro.

RP: Com uma influência do João aí à mistura…
Também, mas sobretudo porque o Giro calha ali em Abril e eu gosto muito de correr ao frio e à chuva.

HA: O que retiro do que estás a dizer é que entre as grandes voltas e as principais clássicas, vês-te mais a lutar pelas provas de três semanas, é isso?
Eu nos primeiros anos vou tentar evoluir nessa parte, mas se depois reparar que o outro terreno me é mais adequado irei por aí. A estrada dirá, mas quero testar-me nessa área.

RP: Como te descreves então como ciclista?
Faço tudo, faço tudo. Se acabar a subir vou tentar, se acabar a rolar vou tentar, se acabar ao sprint vou tentar.

HA: Tu tens essa versatilidade e essa explosividade que te permite discutir a vitória ao sprint em grupos pequenos.
Vou-te ser sincero: não sei ler muito bem os sprints. Quando chega ao sprint eu fico sempre "será que arranco agora?". Não costumam correr muito bem os sprints nesses grupos pequenos. Mas sim, sei que tenho potência para ir com eles, mas é complicado, é quase um jogo de xadrez às vezes. Mais o lado tático do que as pernas.

HA: O próximo passo parece ser o WT. Estás a pensar ir já para o ano ou primeiro queres limpar tudo em sub-23?
Vamos ver, é com o tempo. Acho que o importante é sentires-te preparado física e psicologicamente antes de passar para o próximo nível, vamos ver como é o futuro.

RP: Também depende da equipa para onde vais, há equipas que te permitem correr mais em sub-23 do que outras.
Sim, mas hoje em dia qualquer equipa de WT não vai meter um miúdo de 19 anos a fazer uma grande volta ou corridas com o Pogačar. Claro que há exceções, como o Ayuso foi, mas o Ayuso também não é normal. Pessoal normal, assim com 19 ou 20 anos, não vai fazer as grandes corridas. Vai fazer um calendário que já não é o de sub-23, é sempre contra profissionais, nível muito alto, mas não vai fazer as grandes corridas e vai poder continuar a sua evolução.

RP: O vencedor do Giro de que já falaste, ele está numa equipa WT, embora se possa chamar a equipa de desenvolvimento da Jumbo, mas participa em corridas sub-23. Há equipas que permitem isso e há outras que assumem que se o ciclista tem potencial corre com os elites.
Sim, a maior parte dos rapazes que ganham agora no meu escalão já correm com os profissionais. Vou dar aqui um exemplo, o norueguês [Staune-Mittet] e o Busatto, já correm com os profissionais.

HA: Gostavas de fazer essa transição em modo híbrido, ou seja, já correr com os profissionais mas ainda fazer provas sub23?
Acho que não. Quando passar é para passar.

HA: E se tivesse só nas tuas mãos passavas já?
Isso é uma decisão complicada mas talvez a seguir aos mundiais e ao Avenir tenha uma melhor ideia sobre isso.

RP: Então e o Morgado fora da competição. Aqui há uns tempos saiu uma entrevista do Remco, o ciclista perfeito nas camadas jovens, em que ele fala em como o futebol o ajudou na passagem para o ciclismo, por causa do nível de profissionalismo ao nível do treino, de hábitos alimentares, etc. Quando é que sentiste que passaste a ser um atleta profissional com atenção a estes detalhes todos?
Eu adoro treinar árduo, sempre no limite. Agora profissional acho que ainda nem comecei. Vou agora começar a trabalhar com um nutricionista.

HA: Mesmo ao nível dos picos de forma, falaste há pouco de como partias a tua época em três partes. Como fazes essa gestão?
Eu não faço, o meu treinador é que faz. Pergunta onde é que eu quero estar bem e depois trabalhamos para esses objetivos.

RP: Então e o abdicar da vida de adolescente?
Não me custa nada abdicar da vida de adolescente, o que me faz sofrer é ficar para trás nas corridas, isso é que me deixa triste. Não há nada que me deixe mais triste do que isso.

RP: Se calhar por estares desde tão novo habituado a isso nem dás tanto pela diferença. Mas há dias em que pões esse estilo de vida em causa e que se calhar não é para ti? Nos dias em que ficas para trás?
Quando fico para trás o que eu penso é que quando ganhar me vai saber três vezes melhor do que andar aqui em grupetos e tal.

HA: Apesar da evidente paixão e determinação ao ciclismo, hás-de fazer algumas coisas sem ser andar de bicicleta ou não?
Sim sim, jogo computador. Os meus dias normalmente são acordar, tomar o pequeno almoço, treinar, agora vir para casa ver o Tour e depois jogo o dia todo. "Counter-Strike" sobretudo, que já jogo há muito tempo.

RP: Sabemos que a comunidade portuguesa atenta ao ciclismo está a crescer, sobretudo devido ao João, e é muito ativa nas redes sociais. Como lidas com as expectativas que os portugueses já começam a ter sobre ti? Os portugueses e não só, que eu já li sobre ti que ias ser o futuro "vencedor de tudo".
Lido de forma normal. Para mim é igual, vou trabalhar igual. Temos de aceitar as coisas como são. Sofro mais com a pressão que meto em mim próprio, é um dos problemas que tenho andado a trabalhar.

HA: Antes de fecharmos temos só aqui um pequeno desafio, umas perguntas rápidas, uma sobre ciclismo, outras nem por isso. Duas opções só cada.

Milan San Remo ou Roubaix?
San Remo.

Compal de Pêssego ou de Maçã?
Pêssego, claramente.

MvdP ou WvA?
WvA.

Panamá ou cap?
Cap.

Ganhar ao sprint, mesmo na cara deles, ou isolado com um ataque a 100 quilómetros da meta?
Isolado, fácil.

Game of Thrones ou La casa de papel?
La casa de papel, que nunca vi Game of Thrones.

Counter-Strike ou Call of Duty?
Uiiiiii. CoD, com dificuldade.

Correr com zero graus ou com 40?
Zero.

Morgado sem bigode ou sem bicicleta?
Sem bigode [pausa para pensar].

35 etapas no Tour ou os cinco monumentos?
Os cinco monumentos.

[Esta entrevista foi realizada no dia 19 de Julho de 2023]