Antevisão — La Vuelta ciclista a España
Já há muito que La Roja não tinha tantos, e tão bons, pretendentes. Isto promete.

Introdução
Se a grande volta por terras de Nuestros Hermanos já costuma representar uma maneira interessante de fugir às horas de maior calor em Agosto, esta edição então tem tudo para nos deixar coladinhos ao sofá. Temos os vencedores das últimas 4 grandes voltas presentes, temos potencial para intrigas internas na UAE mas sobretudo entre os tubarões da Jumbo, temos as duas maiores esperanças do ciclismo mundial (Remco Evenepoel e Juan Ayuso) a colocarem-se à prova frente aos melhores do mundo e temos ainda uma representação nacional bem composta liderada por um João Almeida de olhos postos no pódio. E temos nove chegadas em alto mais uns dias acidentados para esta malta se gladiar toda entre ela.
Os condimentos estão todos presentes para uma grande última grande volta do ano que vai levar os ciclistas de Barcelona a Madrid, onde se saberá quem sucederá a Remco Evenepoel.

O percurso
Etapa 1 — Agora decidiram que hão-de começar sempre a Vuelta assim. Enfim. Primeiras diferenças, perto de insignificantes, entre os homens da geral e Kuss de vermelho.

Etapa 2 — Etapas de sprint básicas na primeira semana é tão anos 2000. Um murito a 5 quilómetros da meta e uma chegada em subida sempre torna as coisas mais interessantes.

Etapa 3 — Quem não entrar com boas pernas na Vuelta, tira o bilhete logo à terceira etapa. 7 quilómetros a mais de 8% até quase 2000 metros. A clássica terceira etapa de uma grande volta, portanto.

Etapa 4 — Etapa que começa em Andorra e é sempre a descer. Duas contagens nos últimos 50 quilómetros não devem afastar os "sprinters" presentes da luta.

Etapa 5 — Há tão poucos homens rápidos que isto até pode dar na fuga, tal como na véspera. Mais uma etapa de transição.

Etapa 6 — Mais um confronto entre os trepadores está reservado para a subida final. Nesta primeira semana espero mais ver nomes sair da luta do que candidatos isolarem-se na frente.

Atenção que a subida final é meio uma fake news climb. Os últimos cinco quilómetros são impiedosos.

Etapa 7 — Dia de descanso. Ganha para aí o Aberasturi.

Etapa 8 — A bela da etapa rompe pernas ao bom estilo espanhol. E o belo do murito final para o espetáculo estar garantido.

Etapa 9 — Etapa ao sprint ganha por Roglič.

Etapa 10 — 25 quilómetros planos perfeitos para os roladores colocarem a potência na estrada e ganharem vantagem. Remco estreia-se a vencer com a nova camisola de campeão do mundo.

Etapa 11 — Unipuerto que deve dar fuga, ou mais uma para o sprinter Roglič.

Etapa 12 — Segundo dia de descanso. Ganha Molano.

Etapa 13 — Etapa rainha desta Vuelta. Curtinha, concentra 4282 metros de acumulado em apenas 136 quilómetros. Chegada no Tourmalet, não é preciso dizer muito mais. Só mesmo mencionar que é estranho a etapa rainha da Volta à Espanha ser em França.

Etapa 14 — As mais difíceis subidas estão muito longe da meta. Ou há algum desespero de gente que dentro do top-10 precisa de recuperar muito tempo ou deve dar fuga. É daquelas que pode dar etapón ou flop.

Etapa 15 — Etapa clássica de transição para uma fuga. Ganha Mollema.

Etapa 16 — Mais uma com um unipuerto duro, mas curto. Deve ser dia de descanso para a GC, que no dia a seguir há festa, e mais uma para a fuga.

Etapa 17 — Quem não adora o Angliru? Contador a despedir-se em grande, Kuss à espera do Roglič, Vingegaard a ganhar a Vuelta...

Para quem não conhece em detalhe, ou precisar de ser relembrado, fica aqui o perfil deste monstrinho.

Etapa 18 — Último dia de alta montanha tem um percurso que permite ousadia por parte de quem ainda precise de uma revolução na classificação. Segundas linhas das equipas poderão ser lançadas para termos um dia frenético.

Etapa 19 — Pouco sprinters existiam à partida, menos ainda chegarão aqui.

Etapa 20 — Se a GC estiver presa por arames esta etapa vai ser um espectáculo de início ao fim. 10 (!) subidas categorizadas num percurso que tem tudo, menos metros planos.

Etapa 21 — Consagração em Madrid. Tempo de balanços finais e de um sprinter que não é bem sprinter ganhar uma etapa numa grande volta.

O que esperar
No que à classificação geral diz respeito a responsabilidade de decidir o rumo da corrida estará nos ombros das abelhas, que trazem um bloco impressionante. Duas das questões que estou curioso de ver respondidas são 1) se nas várias etapas unipuerto trabalharão com vista às bonificações de Roglič ou se deixarão as fugas vingarem e 2) se voltarão a jogar o jogo de quererem fugir à liderança da geral. Nos dias com mais acumulado têm tudo para dizimar o pelotão e deixar os restantes líderes, sobretudo Remco, sozinhos.
O belga é a principal ameaça aos homens da Jumbo-Visma e apresenta-se aqui com um bloco fraco mas com as pernas no sítio, pelo menos é o que o título mundial dá a entender. Será o maior desafio da carreira de Evenepoel, tanto ao nível da dificuldade do percurso como da concorrência.
Há mais dois blocos que terão capacidade para mexer com a corrida. A UAE traz dois lideres que fecharam pódio na sua última participação em grandes voltas, João Almeida e Juan Ayuso, e ainda um Jay Vine que promete andar com os melhores nos dias mais difíceis. Para superarem um dos três principais favoritos e chegarem ao pódio sem necessitar de azares, terão de ser criativos e jogar as suas cartas de forma audaz, aproveitando alguma sobremarcação entre eles. Veremos se em algum momento algum deles descai para um papel de gregário, mas penso que evitarão isso até que se torne inevitável. Depois temos a experiente INEOS, que traz Geraint Thomas à procura do pódio e Arensman como backup. O bloco é, como habitual, muito forte, mas penso que falta um líder com a real capacidade de assustar os favoritos e ter um grande impacto na corrida. A estratégia passará por aguentar o máximo possível com os melhores e ver onde a corrida lhes poderá dar uma oportunidade.
Numa terceira linha de homens que poderão aspirar ao top-5 estão homens como Aleksandr Vlasov e Enric Mas, ambos bem secundados por bons blocos para a montanha. Daqui para "baixo" dificilmente vejo alguém poder intrometer-se na luta pelos lugares cimeiros, mas a Vuelta é pródiga em surpresas.

O contigente de homens rápidos não é, como já vem sendo hábito, muito forte nesta edição, apesar de a organização ter deixado algum espaço para eles brilharem. Num mundo ideal, há seis dias que poderão ser disputados pelos sprinters, e se todos forem aproveitados, talvez consigam que a camisola dos pontos seja disputada entre eles ao invés de cair para um homem da geral, sendo a meu ver Roglič o maior candidato entre eles.
O mais rápido dos homens presentes é Kaden Groves, picou o ponto nas duas grandes voltas que disputou até agora (Vuelta'22 e Giro'23) e agora a concorrência é mais fraca, além de trazer um bloco inteiro destinado aos seus sucessos, pelo que prevejo pelo menos duas vitórias para o australiano. Os sprinters com mais hipóteses de o incomodar serão Juan Sebastián Molano (que não vai sair de mãos a abanar), Alberto Dainese, Gerben Thijssen e Bryan Coquard, este último com um perfil mais adequado a chegadas um pouco mais seletivas. Numa segunda linha, há ciclistas como Marijn van den Berg, Hugo Hofstetter e Milan Menten que, num dia bom, não descarto a possibilidade de os ver levantar os braços em Espanha.

É tradição na Vuelta a camisola das bolinhas ficar para os combativos ciclistas que se aventuram nas fugas dos dias montanhosos. Acredito que, havendo tantos dias com chegadas em alto e tantas oportunidades para os fugitivos festejarem, que a tradição se manterá. Sendo sempre uma lotaria, há nomes como Romain Bardet, Santiago Buitrago e Filippo Zana que pela sua capacidade a subir e pela liberdade que terão dentro das equipas, vejo como favoritos à partida para levarem para casa esta camisola. Outros como Steff Cras, Cristián Rodríguez, Javier Romo, Geoffrey Bouchard e Jesús Herrada poderão também ter uma palavra a dizer.

A luta pela camisola da juventude está entregue aos homens da geral, dificilmente fugirá a Remco, Ayuso ou Almeida. Mas o que não falta nesta Vuelta são jovens que vêm aqui estrear-se em grandes voltas e que pelo que mostraram até agora, deixam água na boca quanto ao que podem fazer nesta edição. A dupla da FDJ composta por Lenny Martinez (20 anos) e Romain Grégoire (20 anos), as duas maiores esperanças francesas da atualidade, têm sobre si muitas expetativas. O primeiro quem sabe com ambições de geral dada a sua já comprovada capacidade a subir, o segundo mais à caça de etapas que vão ao encontro do seu estilo puncheur. Cian Uijtdebroeks (20 anos) é o vencedor em título do Tour de l'Avenir e este ano fechou as quatro provas por etapas (três de nível WT) em que participou no top-10 e procurará aqui testar-se em 3 semanas. Não acredito que seja amarrado pela equipa e ficaria surpreendido se saisse daqui sem uma vitória em etapa ou um top-10 na geral final. Max Poole (20 anos) e Oscar Onley (20 anos) da DSM também suscitam interesse quanto ao que poderão fazer com concorrência deste gabarito. Lennert Van Eetvelt (22 anos) e Kévin Vauquelin (22 anos), representado a Lotto e a Árkea, respetivamente, terão toda a liberdade dentro das equipas e, procurarão, acredito eu, um lugar entre os 10/15 primeiros no final da prova.

Uma nota final para o contigente português (o maior numa grande volta desde o longíquo ano de 1984) que se apresenta aqui na máxima força, com todos os ciclistas de equipas WT na startlist, excepto o Ivo Oliveira que saiu à última da hora por doença. João Almeida virá para disputar a prova e conta na sua equipa com o Rui Oliveira, que estará à disposição dos líderes no terreno mais plano. Na Movistar teremos Ruben Guerreiro e Nelson Oliveira que estarão primordialmente ao serviço de Enric Mas, mas que aqui e ali, sobretudo o cowboy, poderão ter as suas oportunidades de lutar por uma etapa. Lutar por etapas será exatamente o foco de Rui Costa, que procurará a primeira vitória na grande volta espanhola para culminar em beleza uma época em que tem estado a um nivel que já poucos acreditavam ser possível. A completar a armada lusa estará André Carvalho, que se vai estrear em provas de três semanas e procurará acima de tudo ajudar os seus lideres e ganhar experiência.

Favoritos
Jonas Vingegaard — É o vencedor do Tour e é o melhor trepador do mundo. E quem reúne estas características tem que ser o favorito a vencer qualquer grande volta em que entre. A minha dúvida recai sobre a forma com que entrará na Vuelta, já que há dias difíceis logo a abrir e se ele perder algum tempo a hierarquia dentro da equipa pode apertar.
Primož Roglič — Está na prova dele, com a preparação perfeita e o registo imaculado na época, tendo vencido tudo aquilo em que entrou. O perfil tem muitas etapas ao seu jeito, onde poderá usar a sua ponta final para arrecadar montes de segundos de bonificação. A dúvida neste caso recai sobre se esses segundos serão ou não suficientes para o tempo que perderá (?) no Tourmalet e no Angliru para o seu colega de equipa.
Remco Evenepoel — Eu não estou bem a ver como é que o belga vai ganhar aos dois senhores acima mencionados. Mas ele já me surpreendeu muitas vezes. Deve ganhar uns 30 segundos no ITT e depois, em desvantagem numérica e de experiência, terá de ser à base da força que aguenta com as duas abelhas. Se queres ir ao Tour para tentar ganhar tens de vencer os grandes, por isso, tirem-se as teimas.
A não perder de vista
João Almeida — A melhor startlist que já enfrentou na carreira e o melhor colega com que já entrou num GT. O bota lume não vai ter tempo para ir de menos a mais, porque se o fizer acabará como gregário. Tem de ser a fundo desde início para reenvidicar o seu lugar na hierarquia, ter a hipótese de jogar com o fator de "correr por fora" e poder sonhar com um pódio. Mais do que isso, até para mim (membro assinante da 🏴☠️🇵🇹), é pedir demais e seria uma tremenda e agradável surpresa.
Juan Ayuso — Quem faz pódio na primeira participação num GT é especial, e disso já não restam dúvidas em relação ao espanhol de 20 (!) anos. A época até agora não foi ideal, começou o ano parado e na aproximação à Vuelta foi ao chão mais do que uma vez. No entanto, foi para esta prova que preparou toda a sua época e há muita expetativa sobre o nível a que se apresentará, havendo inclusivamente quem pense que se pode imiscuir na luta pela vitória. Eu penso que dado o nível ainda é cedo para isso, mas o potencial está lá.
Geraint Thomas — O galês já provou vezes suficientes de que é capaz de andar na luta mesmo que à primeira vista isso não pareça provável. Primeira vez que vem à Vuelta com objetivos de geral, o percurso não se adequa particularmente ao seu perfil diesel, mas eu não o descarto da luta pelo pódio.
Enric Mas — Há um super Enric Mas que de vez a vez aparece, normalmente em Espanha. Este ano ainda não mostrou nada mas estamos na sua corrida, onde vem de dois segundos lugares. Com as pernas do ano passado, pode lutar pelo pódio.
Apostas falso plano
Fábio Babau — Primoz Roglič, se está escrito, vai acontecer.
Henrique Augusto — A lei do mais forte acaba sempre por imperar. Jonas Vingegaard.
Lourenço Graça — Roglič, ao colo de Vingegaard.
Miguel Branco — Jonas Vingegaard. Já que veio, espero que seja para ganhar e também porque me dá gozo ver o Roglič perder.
Miguel Pratas — 1-2 para a Jumbo. Vingegaard com a roja.
Ricardo Pereira — Ayuso para lançar a discussão sobre o próximo Tour.